sexta-feira, 9 de abril de 2021

Hegel, a teologia liberal alemã e os regimes totalitários

Seu amor uns pelos outros provará
ao mundo que são meus discípulos.
(João 13:35)




 

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, mais conhecido no círculo acadêmico (e até mesmo nos estudos filosóficos do ensino médio) por seu último nome, Hegel, foi um filósofo germano que desenvolveu sua obra no início do século XIX.  Sua herança repercutiu sobremaneira nas correntes de pensamento do século XX e afetam as discussões, não somente do âmbito filosófico, mas teológico e político até os dias de hoje. Talvez você tenha tido algumas aulas de filosofia básica durante o ensino médio, e esse nome não te parece estranho. Ou, se você tiver optado pela área de humanas, a filosofia fez parte de sua graduação e com certeza Hegel apareceu como leitura obrigatória na ementa dessa disciplina.

Hegel é considerado pai do materialismo – aquilo que é palpável, real, material. O materialismo é uma forma de produção de conhecimento, um meio (caminho) de se chegar à verdade, aquilo que seria real para o pesquisador (ou quem estuda). Esse estilo de produção de conhecimento foi um marco para o pensamento humano moderno, posto que, o objetivo de Hegel era romper com todo tipo de metafísica (aquilo que não é palpável), pressuposto presente tanto na religião como na produção de conhecimento e filosofia até então (Kant[1], Decartes[2]...).

Todavia, filósofos e pensadores posteriores a Hegel o criticaram nesse ponto, tendo em vista que o escapismo da metafísica é sempre um exercício ingênuo. O rompimento com a metafísica para a produção do conhecimento é tão utópico como a total neutralidade na produção desse mesmo conhecimento, e o famoso princípio (discutido até os dias de hoje nas academias de Direito) do juiz neutro. Desvencilhar-se de suas opiniões, credos e demais características (não palpáveis) que compõem o indivíduo para a produção de algo, nunca existiu de fato, criador e criação sempre estarão interligados[3].

 

Pensamento hegeliano e as bases do marxismo

Os principais pontos do pensamento hegeliano foram os fundamentos do pensamento marxista. Não é atoa que após Hegel vem Marx[4] no programa de estudos de filosofia básica do Ensino médio ou os primeiros anos do seu curso da área de humanas. A autonomia subjetiva – indivíduo como plenamente capaz de chegar sozinho à verdade. Hegel entendia que existia uma verdade absoluta que poderia ser encontrada pelo indivíduo, com uma espécie de idealismo absoluto: um final da história. Esse foi o fundamento para Marx enxergar a sociedade perfeita, por meio de um sistema de governo completamente comunitário e igual.

Outro ponto do pensamento hegeliano foi o materialismo e a dialética. Hegel via a história pela ótica dialética (tese – antítese – síntese), aquilo que está posto e não é justo (tese) deve ser confrontado (antítese) para que um final melhor seja alcançado (síntese). Esse processo era visto de maneira cíclica, até ter um fim ideal. Esses foram os óculos usados por Marx para explicar a história da economia e sociedade. Este entendia que o confronto (guerra / revolução) sempre seria digno porque teria como fim uma síntese mais justa, uma sociedade mais igualitária, onde os recursos seriam melhor geridos e distribuídos (comunismo).

Todavia, o que Hegel e Marx ignoraram foi a total corruptibilidade do coração do homem, sua sede por poder e controle, sua capacidade tenebrosa de massacrar outro semelhante para ter seus interesses realizados. O resultado disso é possível ver até os dias de hoje, governos totalitários que em “nome do bem comum” estiveram dispostos a sacrificar direitos individuais de sua população, restringir todo tipo de comunicação com outros países, torturar, e até mesmo matar a própria população.

 

O pensamento hegeliano e as bases do nazismo

 Os mesmos fundamentos hegelianos foram usados por teólogos e pensadores que (se diziam) cristãos afim de, desenvolverem, por meio de uma descrição racional, uma nova teologia paulina. Semler[5] trouxe um esquema dialético do desenvolvimento do Novo Testamento, no qual ele explicava da seguinte forma: Paulo rompe com a soteriologia[6] retributiva judaica[7] (tese); havia uma comunidade judaizante e seus líderes seriam Pedro e Tiago (antítese); o confronto entre essas duas visões resultou na comunidade joanina helenística-cristã (síntese).

Esses fundamentos teológicos desenvolvidos por Semler entendia o cristianismo como sendo superior ao judaísmo. E no desenrolar do século XIX novos teólogos surgem seguindo esse mesmo raciocínio de usar a razão para chegar à verdade a respeito de Deus, e muitos trabalhos acadêmicos são desenvolvidos nesse período. Até que em 1904, William Wrede defende que Paulo é o fundador do verdadeiro cristianismo. Wilheim Bausset descarta o Antigo Testamento como obra teológica. Assim, o solo estava pronto para o desenvolvimento de um forte antissemitismo e pujante nacionalismo alemão.

De 1914 a 1916 a Primeira Guerra Mundial acontece, Alemanha de um lado e Inglaterra de outro. Os fundamentos ideológicos nacionalistas continuam sendo produzidos em todas as áreas do conhecimento. Nesse período tudo de origem judaica era visto como inferior ou “burro”. Teólogos[8] tornam-se entusiastas dos ideais nazistas e contribuem para a criação do Partido Nacional Socialista (partido da base de Hitler).

E o resultado desse desenfreado pensamento você já sabe onde deu, não é mesmo? De 1939 a 1945 explode a Segunda Guerra Mundial, acumulando ressentimentos da primeira e os ideais de purismo racial consolidado. Os historiadores estimam que mais de seis milhões de judeus foram mortos durante o período do governo nazista alemão, muitos desses em campos de trabalho forçado (campos de concentração). Negros, homossexuais, ciganos e todos que se colocavam contra o pensamento de seu líder alemão (Hitler) foram exterminados.

Desde 1980 as vítimas judias que foram mortas durante o Holocausto são lembradas no dia 27 de Nissan[9], uma semana após a Páscoa do calendário judaico. Em nosso calendário (2021) esse dia de memória aconteceu em 07 de Abril, anteontem. Dias como estes precisam ser lembrados, museus que mostram fragmentos desse massacre precisam ser visitados, para que não venhamos nos esquecer do que o ser humano é capaz.

 

Conclusão

Será que Hegel, Marx ou mesmo teólogos que estavam querendo um conhecimento racional de Deus, teriam previsto que seus pressupostos resultaria no século XX que tivemos? Será que eles consideraram a depravação total do homem e suas inclinações? Creio que não. Todavia, o que podemos entender de toda essa sequência de fatos nefastos é que um cristianismo sem amor é um cristianismo sem Cristo. Um cristianismo que desumaniza outros seres humanos não é cristianismo. Uma teologia sem amor é uma teologia sem Deus. A racionalidade por si só não pode alcançar o verdadeiro conhecimento do Eterno.

Um cristianismo nacionalista que rejeita o próximo por causa da cor de sua pele, nacionalidade (xenofobia), origem social e afim é um cristianismo sem Cristo. Um cristianismo que considera a violência, métodos de tortura, governos totalitários e utilizam teologias para fundamenta-lo, precisa rever seus conceitos.



[1] Immanuel Kant, filósofo prussiano (alemão) que desenvolveu sua carreira e teorias durante metade do século XVIII até o início do século XIX. Um de suas principais obras foi: A metafísica dos costumes.

[2] René Decartes, filósofo e matemático francês, foi considerado o fundador da filosofia moderna e pai da matemática moderna. Uma de suas frases mais conhecidas, que resume um pouco de seu pensamento é: “Penso, logo existo”.

[3] Uso aqui essa comparação não apenas de Deus e sua criação, mas do homem e suas criações: música, poesia, ciência, linguagem e demais artefatos culturais. Além da impossibilidade de neutralidade, tudo está misturado à metafísica.

[4] Karl Marx, filósofo alemão do final do século XIX. Idealizador do socialismo (comunismo).

[5] Johann Salomo Semler, teólogo alemão contemporâneo a Hegel. Em suas obras foram encontradas as primeiras menções da teologia liberal.

[6] Estudo da doutrina da salvação.

[7] O entendimento judaico a respeito da salvação era fundamentado na lei. A obediência à lei os levaria a salvação, por isso uma salvação retributiva, recebida como recompensa pelas boas ações. É uma crença comum na maioria das religiões do mundo.

[8] Gerhard Kittel foi um exemplo.

[9] Leia mais a respeito em: https://moriacenter.com/holocausto-em-israel/?lang=pt-br