terça-feira, 19 de outubro de 2021

As afeições do nosso coração


Transforma quem eu sou por dentro

Domar os sentimentos que não vem de Ti

Transborda quem eu sou por dentro

E molda os meus afetos e desejos mais profundos

Eu quero te querer ainda mais

Eu quero te querer ainda

Me ensine a te querer ainda mais

 

(Marcelo Sissá e João Manô – Você é aquilo que ama)


 

Quando nos deparamos com as escrituras e os requisitos do discipulado de Jesus, podemos pensar: como são altas essas “exigências”! É muito difícil ser discípulo de Jesus! Será que consigo viver a boa, agradável e perfeita vontade de Deus para minha vida? Quando olhamos para nós mesmo e nos deparamos com os tropeços diários nossa resposta sempre será negativa, e viveremos sempre com o real e o ideal – como sou e como deveria ser.

Todavia, percebemos em toda a história bíblica que o mesmo Deus que estabelece o padrão, nos auxilia, por meio Dele, a forma de alcançarmos esse padrão. É Ele quem cria em nós um Espírito inabalável capaz de resistir as mais violentas tempestades. É Ele quem nos dá o livramento nos momentos de tentação. É Ele quem nos ensina a amá-Lo acima de todos os outros amores. E esse último ponto é o cerne de todas as coisas. As afeições do nosso coração diz quem somos e para onde estamos indo.

Já escrevi isso em outros texto aqui, e provavelmente você deve ter lido ou ouvido outras pessoas falarem a mesma coisa, pois no final das contas é o que a Bíblia nos ensina: O nosso Deus é um Deus relacional! Ele nos criou para essa finalidade, viver em comunidade. Fazer parte de Sua comunidade (a Trindade). E é exatamente por isso que o escritor James A. Smith[1] afirma que não somos porque pensamos, ou compramos, mas somos porque amamos. Somos o que amamos!

 

O imutável amor de Deus

Sabemos quanto Deus nos ama e confiamos em seu amor. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele. À medida que permanecemos em Deus, nosso amor se torna mais perfeito. Assim, teremos confiança no dia do julgamento, pois vivemos como Jesus viveu neste mundo. Esse amor não tem medo, pois o perfeito amor afasta todo medo. Se temos medo, é porque tememos o castigo, e isso mostra que ainda não experimentamos plenamente o amor. Nós amamos porque ele nos amou primeiro.

(I João 4:16-19)

João escreve essa carta afirmando na primeira pessoa do plural: “Nós sabemos... nós confiamos...”, verdades sobre do amor de Deus. Muitos questionam o testemunho de João a respeito de si mesmo, principalmente no seu evangelho, por afirmar ser: “o discípulo a quem Jesus amava...”. Alguns, por esse motivo, o consideram prepotente ou mesmo chegam a dizer: “Mas, esse João se acha eih!”. Mas, a verdade contida no ensino de João é simplesmente: Confie no caráter de Deus. O Deus que servimos é imutável, e o amor é a própria pessoa Dele. Se o amor é Sua essência e se Sua essência é imutável, podemos ter plena confiança de que o amor Dele por nós não muda! Essa é a razão da certeza e da confiança.

João nos ensina a tirar o foco de nós. A questão do amor não é o quanto O amamos, mas o quanto Ele nos ama. Enquanto os olhos do nosso coração não forem abertos para essa verdade, viveremos dia a pós dia patinando no discipulado de Jesus. É por isso que João afirmava: “Eu sou amado!”, ele não dizia que era “o mais amado”, ele simplesmente confiava que era amado. Por quê? Por que Deus mostrou essa verdade por meio de Jesus. Essa foi a experiência que João teve com Jesus, e é essa experiência que ele nos orienta a te.

O medo é sinônimo de não ter experimentado plenamente o amor. Se tememos é porque não confiamos no caráter de Deus, não confiamos que o sacrifício de Jesus foi suficiente! Paulo traz uma poesia profunda e linda a respeito desse amor do Pai por nós:

“Quem nos separará do amor de Cristo? Serão aflições ou calamidades, perseguições ou fome, miséria, perigo ou ameaça de morte? [...] E estou bem convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o que existe hoje nem o que virá no futuro, nem poderes, nem altura nem profundidade, nada, em toda a criação, jamais poderá nos separar do amor de Deus revelado em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Romanos 8:35 e 38-39)

Se esses versos não são suficientes para trazer confiança, à nossa agitada alma, no caráter de Deus, oremos ao Senhor para que os olhos dos nossos corações sejam abertos. Usando ainda alguns versos do apóstolo Paulo, à igreja de Éfeso, podemos concluir que o primeiro passo para crescermos no discipulado de Jesus é estarmos fundamentados / firmados / enraizados no amor – em Sua pessoa e caráter. 

Quando penso em tudo isso, caio de joelhos e oro ao Pai, o Criador de todas as coisas nos céus e na terra. Peço que, da riqueza de sua glória, ele os fortaleça com poder interior por meio de seu Espírito. Então Cristo habitará em seu coração à medida que vocês confiarem nele. Suas raízes se aprofundarão em amor e os manterão fortes.

(Efésios 3:14-17)

 

Alinhando nossos anseios e desejos

Como afirma Smith: “...a ordem de Jesus para que o sigamos é um chamado a alinhar nossos amores e anseios aos dele – querer o que Deus quer, desejar o que Deus deseja, ansiar pelo que Deus anseia e almejar por um mundo onde ele é tudo em todas as coisas.”. Nossa resposta ao discipulado de Jesus é uma resposta de amor àquele que nos amou primeiro.

Segundo esse mesmo autor, o amor é algo desenvolvido por meio do hábito, das nossas liturgias diárias. Portanto, é possível dizer que aprendemos a amar. Parece estranho dizer isso, e contrário ao que a maior parte dos filmes e séries ensinam, mas o amor está completamente relacionado com algo (alguém) que gastamos nossos dias aqui na terra. O amor está relacionado com nosso dinheiro, tempo e hábitos.

O discipulado de Jesus é um convite para reordenarmos nossas afeições e desejos, posto que, estes naturalmente, em detrimento da queda, foram corrompidos e deturpados. Nosso coração e subconsciente são focados e direcionados para outros lugares. É por isso que nossos afetos e comprometimentos do coração precisam ser calibrados.

[...] se o coração é como uma bússola, um dispositivo erótico de orientação, então precisamos calibrar (regularmente) nosso coração, ajustando-o para que esteja apontado para o Criador, nosso norte magnético. É crucial reconhecermos que nossos maiores amores, anseios, desejos e paixões são aprendidos.

(James A. Smith)

Portanto, as disciplinas espirituais ensinadas por Jesus, reavivadas na igreja por meio do movimento metodista[2], sistematizadas e difundidas pela obra clássica de Richard Foster, Celebração da disciplina, são fundamentais nesse processo de reordenamento de nossos afetos. Como também, a interação de modo consciente no culto ao Senhor, por meio dos elementos litúrgicos – louvor, confissão de pecados, exposição das escrituras, ceia do Senhor – são fundamentais no discipulado do nosso coração.

Dentro das disciplinas espirituais, uma prática que tem sido propagada entre os cristãos é o devocional, um tempo diário para meditação nas Escrituras e oração. Um tempo a sós com o Criador. Essa prática é também niveladora no que diz respeito aos nossos amores, ela nos conduz a contemplar a beleza de Deus e direciona nossos afetos à Ele.

Por mais que a tradição possa ter levado muitos de nós a entender tais meios apenas como rituais religiosos, essas liturgias possuem significado profundo e podem redirecionar os comprometimentos do nosso coração, de volta para Deus. O amor do Pai por nós é o meio pelo qual podemos amá-lo de volta! E amá-lo de volta é uma prática diária.

 

Conclusão

Talvez seu Ensino Médio e Graduação tenham sido parecidos com os meus, e tentaram te convencer de que você é aquilo que pensa ou raciocina, por causa da famosa máxima do filósofo Descartes[3]: “Penso, logo existo!”. Talvez os Shoppings e a sociedade de consumo o convenceram que você é aquilo que seu dinheiro pode comprar. Mas, não se engane, a Bíblia e a prática dizem o contrário: “Você é aquilo que ama!”/ Você é aquilo que deseja!

Por maior esforço que os racionalistas fizeram para nos convencer de que somos racionais, cérebros em um corpo; a experiência e o indivíduo provam o contrário. Somos seres que adoram, que veneram; seja uma ideologia de sociedade, seja ao mercado financeiro, seja ao Deus único, seja à natureza, enfim; nosso coração sempre estará comprometido com algum deus. Pois fomos criados para o fascínio, fomos criados para amar!

 

Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti. (Agostinho de Hipona)

 

 



[1] Escritor do livro: Você é aquilo que ama.

[2] Movimento Metodista, liderado pelos irmãos Wesley’s, John e Charles. Foi um período de avivamento experimentado pela Inglaterra no século XVIII.

[3] René Descartes foi um filósofo, físico e matemático francês. Durante a Idade Moderna, também era conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius.