segunda-feira, 31 de outubro de 2022

As Mulheres na Reforma Protestante

 

Oh, todo-poderoso Deus, Rei dos reis,
Criador do homem e da mulher!
Tu que deste ao primeiro homem uma
companheira para que a raça dos mortais não perecesse;
Tu que desejaste que a alma proveniente
da humanidade venha a ser a mística
noiva do Teu próprio Filho,
e que fizeste com que Teu divino Filho
desse sua vida por ela;
Oh, derrama paz e bênçãos sobre estes
dois que agora se unem diante de Ti.

(Olympia Morata)



Quando o assunto é Reforma Protestante normalmente os texto e boa parte dos livros de história da Igreja, relatam a trajetória de Martinho Lutero, Calvino e Zuínglio. Fui muito edificada com a vida e legado de cada um desses homens, como também dos demais que são citados em diferentes períodos da história da Igreja. Todavia, me recordo de um ano em que eu estava preparando um jogo para a Escola Bíblica de Férias (EBF) da minha igreja. E lembro que quando estava organizando os cartões com a história dos reformadores e avivalistas, não haviam mulheres para colocar nos cartões. E uma adolescente me perguntou: “E onde estão as mulheres? Elas não tiveram contribuição em tudo isso ou não contaram suas histórias?”

Essa pergunta nunca saiu da minha memória, com o tempo ela cresceu, e meus estudos na área, tanto das mulheres História da Igreja como as mulheres da bíblia se intensificou. Dentro dessas áreas veio também o interesse em pesquisar a respeito do ministério feminino e o papel da mulher, dentro e fora dos limites eclesiológicos[1]. Hoje, aproveitando o mês de celebração da Reforma Protestante vou falar um pouco sobre as mulheres desse período. Com a ajuda de Rute Salviano[2], é claro. Essa professora, doutora, tem resgatado a história das mulheres em diversos períodos da Igreja. Rute mostra que em diferentes eras, com ou sem título e reconhecimento eclesiológico e público, elas participaram ativamente dos avivamentos, reformas e da edificação da Igreja; com uma fé simples e testemunho irrepreensível.


As pregadoras, que usavam a pena e a voz

Uma das frentes mais criticadas, até os dias de hoje, por muitos reformadores e membros do clero, era atuação das mulheres na exposição pública das Escrituras. Um dos principais nomes dessa ala de mulheres foi, Maria Dentière (1495-1561). Nascida na Bélgica e introduzida à vida religiosa desde muito cedo. Ao ter contato com os escritos reformados abandonou o convento agostiniano, casou-se com um ex-padre (Simon Robert), tornou-se uma dedicada estudante das escritura, aprendeu hebraico e auxiliava seu esposo na tradução de textos bíblicos.

Dentière levantou a bandeira em defesa da mulher no ministério da pregação pública das Escrituras. Para a reformadora, o sacerdócio universal de todos os crentes incluía as mulheres. E se elas tivessem acesso à Bíblia, poderiam interpretar e pregar a mensagem evangélica da salvação. Dentiére ensinava que a mulher poderia buscar sua identidade por meio do conhecimento das Escrituras.

“Portanto, se Deus deu graça a algumas boas mulheres, revelando a elas, por meio de suas Sagradas Escrituras, algo santo e bom, devem elas hesitar em escrever, falar e declarar umas às outras por causa dos difamadores da verdade? Ah, seria muito audacioso tentar detê-las, e seria muito insensato escondermos o talento que Deus nos deu, nós que temos a graça de perseverar até o fim.”

Os escritos de Dentière, incentivava outras mulheres na escrita e nos estudos teológicos. Infelizmente, a reformadora sofreu censura e perseguição não somente por parte dos católicos de sua época, mas também na ala protestante. Seus trabalhos foram suspensos e suas obras foram impedidas de serem publicadas, pelo conselho de Genebra. Contudo, Dentière não se calou, ela perseverou até o fim.

Olympia Morata (1526-1555), italiana, erudita cristã, fruto da Reforma. Foi a primeira mulher a ser convidada para lecionar grego e latim em uma universidade, mas foi impedida por questões de saúde. Desde cedo foi considerada uma garota prodígio, era chamada de “a mulher mais culta da Europa”. Ela frequentava debates acadêmicos, apresentava preleções e era apreciada por sua eloquência. Morata teve uma conversão genuína e promoveu a Reforma por meio de seus escritos – poemas e cartas que continham suas descobertas bíblicas. Faleceu muito jovem, aos 29 anos, mas completamente transformada.


As esposas, mães e teólogas.

Nessa categoria, nos últimos anos temos visto muitos trabalhos e livros sobre Catarina Von Bora, a esposa de Lutero. Mulher de qualidades singulares, o trabalho de suas mãos e a devoção de seu coração nunca serão esquecidos. Todavia, gostaria de ressaltar aqui, nesse pequeno texto, outros nomes, também importantes para a Reforma Protestante.

Catarina Zell (1497-1562), esposa de Mateus Zell. Mateus era padre quando começou a pregar a justificação pela fé. Ele tinha o desejo de renovar a igreja. Como suas mensagens começaram a causar agitação, o arcebispo de Roma o proibiu de subir ao púlpito novamente. Todavia, ele continuou a evangelizar multidões, e a maioria de seus ouvintes acolheram a fé protestante. Entre as multidões que ouviam Mateus Zell, estava Catarina, foi assim que se apaixonaram e casaram. Eles se tornaram parceiros de ministério, algo notável para a época. Juntos, pastoreavam, acolhiam refugiados, ajudavam necessitados e visitavam os doentes, presos e moribundos.

Além da perseguição dos irmãos católicos, Catarina foi, também, perseguida e criticada pelos líderes luteranos. Na visão deles, ela queria tomar o lugar do marido. Pois além de mãe e esposa, ela tinha aptidão para a escrita, teologia e pregação pública. Catarina era ousada e dava sua opinião sobre o que Igreja deveria ou não fazer em determinadas situações (posição reservada aos homens). Isso causou alvoroço em sua época.

Idelette de Bure (1507-1549), a esposa de João Calvino. Pouco citada na história, mas foi de grande importância no ministério do reformador. Ela era viúva de um pastor anabatista. Após o falecimento do esposo, Idelette casou-se com Calvino em 1540. O trabalho de uma esposa de pastor não era fácil. Idelette tinha um encargo semelhante ao de Catarina Von Bora: hospedar estrangeiros e alunos de seu marido, aconselhar e orar pelos outros, e muitas outras atividades. Calvino a chamou de: “excelente companheira e fiel assistente no ministério”.


As rainhas que acolhiam reformadores

Margarida de Navarra (1492-1549) foi uma delas, irmã do rei da França, Francisco I, e depois rainha do reino de Navarra[3]. Era conhecida por sua caridade e bondade. Tinha um talento nato para a erudição, estudou italiano, espanhol, latim, grego e hebraico. Foi influenciada por Lutero e Calvino, e trocava correspondências com o último. Quando tornou-se rainha de Navarra, abrigou muitos reformadores, como o próprio Calvino. Poetas, filósofos e escritores foram alvos de sua benevolência. Ela fez de seu território um refúgio para pobres, perseguidos e oprimidos da Europa. Entre seus muitos escritos e poesias, o mais conhecidos deles foi uma ficção chamada: “L’Heptaméron” (O Heptameron). Um conjunto de contos que, através do diálogo dos personagens, mostrava preocupação com a ética, amor, amizade, casamento, fidelidade e conflitos entre fé e religião. Essa obra foi uma sábia resposta aos contos imorais de Boccaccio, que na época estavam na moda, na corte francesa.

Renata, princesa da França e duquesa de Ferrara (1510-1574). Renata foi de extrema importância no apoio ao partido protestante, hospedeira de reformadores e auxiliadora financeira. Joana IV, discípula e sucessora de Margarida no reino de Navarra, foi considerada a mulher huguenote mais importante do século XVI.


As mártires, fiéis até a morte

Uma das maiores surpresas que tive ao ler o livro de Rute Salviano, foi conhecer com um pouco mais de profundidade quem foram as mulheres guilhotinadas na Inglaterra por não confessarem a fé católica. O contexto de luta pelo trono entre as herdeiras de Henrique VIII traz essa confusão na cabeça dos que estudam um pouquinho da história inglesa, e nos leva a pensar que o motivo da guilhotina estava atrelado à apenas uma disputa de poder. Todavia, a história nos mostra que a situação era mais complexa.

Quando lemos os relatos históricos da Reforma Protestante na Inglaterra, lembramos apenas de Henrique VIII e sua vontade profana de desfazer seus casamentos e ao mesmo tempo receber a bênção da Igreja. Mas, foi através de Catarina Parr, sua sexta e última esposa, que a nobreza da Inglaterra conheceu a verdadeira fé reformada. Erudita e amante das escrituras, a rainha ficou conhecida por distribuir a bíblia na língua do povo durante seu governo regente (na ausência do marido), em 1543.

A rainha Catarina ficou conhecia pelo “Salão protestante”, uma programação diária de atividades religiosas em seus aposentos. Todas as tardes, ela e suas aias, amigas e outras pessoas se reuniam para ouvir a pregação de um de seus capelães. O Salão protestante promoveu a publicação de obras sacras e a promoção de pessoas cultas. Uma das discípulas de Parr, foi a mártire Anne Askew. Alguns religiosos desse época chamaram esse movimento de “conspiração de mulheres teólogas”. Catarina foi salva da guilhotina por intervenção de seu marido, todavia Askew não teve o mesmo fim.

Anne Askew morreu como herege, por não confessar a fé católica. Até nos últimos instantes antes de morrer, não hesitou em exortar e pregar a verdade do evangelho.

No dia 16 de julho de 1546, aos 25 anos, Anne foi queimada na fogueira. Como resultado de tanta tortura, incapaz de andar, ela precisou ser carregada em uma cadeira até o local de sua morte. Foi presa à estaca pela corrente que a amarrava e executada junto com sete outras pessoas que negavam a transubstanciação.

 

Conclusão

Quando nos deparamos com a história dessas mulheres temos a certeza de que a Reforma Protestante e a Igreja de modo geral, não teria sido a mesma sem a presença e atuação dessas servas de Deus. Cada uma em seu ambiente social, com seus dons e talentos específicos, foram usadas poderosamente pelo Espírito Santo. Essas, são aquelas que tiveram algum registro histórico, todavia, há outras que conheceremos suas histórias na eternidade. As que ficaram no anonimato receberão a recompensa do Eterno.

Ante a tão grande nuvem de testemunhas, lembremo-nos do que o apóstolo Paulo escreveu: “Portanto, meus amados irmãos. Trabalhem sempre para o Senhor com entusiasmo, pois vocês sabem que nada do que fazem para o Senhor é inútil.”.



[1] Da Igreja.

[2] Livro: Reformadoras (Rute Salviano e Jaqueline Sousa)

[3] Região localizada no norte da Espanha, conserva o mesmo nome nos dias de hoje.