quinta-feira, 9 de março de 2023

Até que Tenhamos Rosto

 



A maior de todas as ciências é
Conhecer-se a si mesmo. Porque quem conhece
A si mesmo conhecerá também a Deus.
(Clemente de Alexandria)

 

Disponível no Museu do Louvre - Paris (Fonte: Instagram do Louvre)

 

Não sei se alguma vez você já leu o mito grego de Eros e Psique, ou ao menos ouviu falar sobre. A primeira vez que tive contato com esse mito, foi no ensino fundamental através de uma literatura infato-juvenil chamada: “Viagem ao reino das sombras”[1]. Trabalho curricular da nossa querida professora de português, Edina. Recordo-me que foi uma leitura que me agradou bastante na época.

O mito consiste na história da filha mais nova de um rei que nasce com uma beleza incomum. A beleza da jovem é tamanha que desperta a inveja de Afrodite[2]. Esta, incube seu filho Eros[3] a lançar uma maldição sobre a jovem, todavia, o plano da deusa sai pela culatra. Quando Eros vê a garota, fica perdidamente apaixonado, e decide trazê-la para seu palácio celestial no topo de uma montanha. Ali a jovem Psique vive um romance com Eros, com a condição de que ela nunca visse seu rosto. O conflito está no momento em que as irmãs de Psique vão até a montanha, veem o palácio e sentem inveja dela, assim a induzem a usar uma lamparina para ter a certeza de que o amante era humano, e não um monstro.

C. S. Lewis, em sua versão desse mesmo mito, traz a perspectiva da irmã mais velha. A irmã "feia" que na verdade criou Psique como sua filha. O enfoque da obra não se encontra no romance da garota com o deus, ou na crueldade de Afrodite, nem mesmo no esperado final feliz que o casal supostamente teve, mas sim, em como somos capazes de viver uma vida sem rosto. Seres incapazes de olhar para o espelho, insatisfeitos com a própria vida por causa do outro. Fazendo do outro nosso adversário ou objeto que atrapalha a felicidade.

Há uma semelhança na atitude de Eros e da irmã de Psique, ambos escondem sua identidade (seus rostos), um por meio da escuridão a outra por meio de um véu. Uma perfeita ilustração da fuga do: “Conhece-te a ti mesmo”, e um incentivo à filosofia do “Hakuna Matata[4]”, esqueça os seus problemas. É mais fácil fugir que encará-los.

 

Cristo e Eros

No mito, o deus Eros esconde seu rosto da amada, pois tinha medo da cólera de sua mãe, Afrodite. Ele havia recebido a ordem de amaldiçoar a mortal, mas seu desejo era transforma-la em imortal, pois se afeiçoou àquele ser. Jesus vem ao mundo e mostra o rosto de Deus à humanidade. Ele não esconde seu rosto, pois estava em parceria com o Pai para juntos abençoarem aos mortais, dando-lhes vida eterna (imortalidade). O Deus da Bíblia é o Deus que se revela, e não o que se esconde. Ele deixa claro em todo o decorrer da narrativa bíblica que Ele quer ser conhecido, em todas as gerações.

Outro ponto interessante no romance entre o deus e a mortal, é que segundo o mito Psique faz sua própria jornada ao reino dos mortos a fim de salvar-se. Não é Eros que resgata ou salva sua amada, mas através de seus próprios esforços a amada ganha seu direito no panteão dos deuses. Na história da redenção, vemos o contrário, Cristo fazendo a jornada ao inferno para resgatar sua amada (Igreja) da condenação eterna.

O ser humano sempre será incapaz de salvar a si mesmo. As escrituras afirmam:

Todos pecaram e não conseguem alcançam o padrão da glória de Deus.” (Romanos 3:23)

Como sou miserável! Quem me libertará deste corpo mortal dominado pelo pecado?” (Romanos 7:24)

É exatamente esse ponto que diferencia o Cristianismo de todas as demais religiões. Os seres humanos estão sempre tentando salvar a si mesmos, por meio de boas ações que são contabilizadas. Os ensinos atuais dentro das ciências sociais e psicológicas é a mesma do mito de Psique: “Salve-se a si mesmo”. Você não precisa esperar por um salvador, pode ser que ninguém venha. Você é o protagonista de sua própria história! Você é a parte mais importante. Você não precisa que um príncipe venha para te salvar, salve-se a si mesma[5]!

Percebe como são discursos parecidos, e que hoje está na boca de muita gente? Tem muita religiosidade onde achamos que “não tem nada a ver”. Não há nenhum tipo de ensino neutro! Precisamos estar conscientes dessa verdade para não nos comprometermos com narrativas que nos distanciam do evangelho.

 

A irmã de Psique

Lewis traz a releitura do mito por meio da narração da irmã mais velha de Psique. Orual, rainha de Glome. A narrativa contempla a infância de Orual e sua outra irmã, e logo depois a chegada de Psique, meia irmã de ambas. O rei de Glome, pai dessas três meninas, é descrito como rude e muito violento. Após a morte deste, Orual passa a governar o país, com a ajuda do chefe do exército, Bardia.

O ponto interessante são as crenças de Orual a respeito dos sentimentos que nutre pelos outros e a respeito de si mesma. Como citei anteriormente, ela faz uso de um véu afim de esconder sua “feiura”. E dentro de todo o desenrolar da vida dessa rainha, seus ressentimentos como mulher – por não ter se casado e nutrir afeição por Bardia – e mãe[6], Lewis nos mostra como é possível viver uma vida enganados a respeito de nós mesmos.

O autoconhecimento é um processo que só é possível por meio do conhecimento do nosso Criador, a partir da perspectiva de que todo nosso ser caiu e necessitamos de salvação. O conhecer a si mesmo precisa de consciência do pecado e suas consequências. Nos sentimentos que chamamos de amor, por exemplo, muitas vezes os confundimos com posse, controle e manipulação.

 

[...] o conhecimento do cristão não se reduz ao entendimento de que Deus existe e é todo-bondoso e todo-poderoso. É preciso ir além, ou seja, é necessário também aprofundar o conhecimento de Deus e suas implicações para o autoconhecimento. A maravilhosa bênção que a revelação divina reserva para aqueles que a conhecem é a grande descoberta de que o Deus das Escrituras revela ao homem não somente o verdadeiro Deus, mas também o verdadeiro homem.

(Inteligência Humilhada – Jonas Madureira)

 

O significado de Psique

No grego clássico a palavra Psique refere-se à alma, ao conjunto de emoções, intelecto e vontade. Os gregos, por meio da escola de Platão, tinham uma perspectiva dual da vida e do seres humanos, a parte material e a parte imaterial. Uma parte menos excelente (corpo) e uma mais excelente (espírito).

É importante nos atentarmos para esse detalhe cultural, posto que, nossa mentalidade e cosmovisão (até mesmo cristã) foi muito afetada pelos gregos. Essa visão dualista das coisas se difere bastante da cosmovisão semítica (judaica), os óculos pelos quais a bíblia foi escrita. Quando temos essas palavras que se referem a alma, espírito e corpo, no grego, tanto na septuaginta (versão da bíblia judaica no grego) quanto no texto neotestamentário, temos uma referência à totalidade do ser ou sua parte mais profunda (que no ocidente chamamos de coração), vejamos alguns exemplos:


Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda tua alma e de toda a tua força. (Deuteronômio 6:4-5)

Louva, ó minha alma, ao Senhor. (Salmo 146:1)

 

O objetivo do escritor bíblico não é tratar dessas partes separadamente, mas do ser humano de modo integral. Não há essa separação entre parte encarnada e parte desencarnada na mente do judeu a respeito do ser humano. Em muitos textos, principalmente os poéticos, a utilização da parte pelo todo (metonímia) é muito comum. São as famosas figuras de linguagem.

 

Conclusão

Se você ainda não leu esse livro, ou nem se quer conhecia o mito de Eros e Psique, perdoe-me pelos “spoilers”, deveria ter avisado no começo do texto, não é mesmo? Mas, o que coloquei aqui foi um resumo do resumo de ambos. Portanto, se quiser conhecer os detalhes, você pode ler o mito e também a obra de C. S. Lewis, “Até que tenhamos rosto”[7].



[1] Obra de Luiz Gaudino, pela editora FTD.

[2] Segundo o panteão grego: deusa da beleza.

[3] Segundo panteão grego: deus do amor.

[4] Pregada por Timão e Pumba na animação “O Rei leão”.

[5] A quebra de paradigma do príncipe encantado, pregado principalmente pela Disney em seus filmes e releituras dos mitos dos irmãos Green.

[6] A mãe de Psique morre durante o parto, assim, Orual cuida de Psique como se fosse sua filha. Faz dela seu objeto de adoração e devoção.

[7] Disponível pela editora Tomas Nelson Brasil.