A maior de todas as ciências é
Conhecer-se a si mesmo. Porque quem conhece
A si mesmo conhecerá também a Deus.
(Clemente de Alexandria)
Não sei se alguma
vez você já leu o mito grego de Eros e Psique, ou ao menos ouviu falar sobre. A
primeira vez que tive contato com esse mito, foi no ensino fundamental através
de uma literatura infato-juvenil chamada: “Viagem ao reino das sombras”[1].
Trabalho curricular da nossa querida professora de português, Edina. Recordo-me
que foi uma leitura que me agradou bastante na época.
O mito consiste na
história da filha mais nova de um rei que nasce com uma beleza incomum. A
beleza da jovem é tamanha que desperta a inveja de Afrodite[2].
Esta, incube seu filho Eros[3] a
lançar uma maldição sobre a jovem, todavia, o plano da deusa sai pela culatra. Quando
Eros vê a garota, fica perdidamente apaixonado, e decide trazê-la para seu
palácio celestial no topo de uma montanha. Ali a jovem Psique vive um romance
com Eros, com a condição de que ela nunca visse seu rosto. O conflito está no
momento em que as irmãs de Psique vão até a montanha, veem o palácio e sentem
inveja dela, assim a induzem a usar uma lamparina para ter a certeza de que o
amante era humano, e não um monstro.
C. S. Lewis, em
sua versão desse mesmo mito, traz a perspectiva da irmã mais velha. A irmã "feia" que na verdade criou Psique como sua filha. O enfoque da obra não se encontra
no romance da garota com o deus, ou na crueldade de Afrodite, nem mesmo no
esperado final feliz que o casal supostamente teve, mas sim, em como somos
capazes de viver uma vida sem rosto. Seres incapazes de olhar para o espelho,
insatisfeitos com a própria vida por causa do outro. Fazendo do outro nosso adversário ou objeto que atrapalha a felicidade.
Há uma semelhança
na atitude de Eros e da irmã de Psique, ambos escondem sua identidade (seus
rostos), um por meio da escuridão a outra por meio de um véu. Uma perfeita
ilustração da fuga do: “Conhece-te a ti mesmo”, e um incentivo à filosofia do
“Hakuna Matata[4]”,
esqueça os seus problemas. É mais fácil fugir que encará-los.
Cristo e Eros
No mito, o deus
Eros esconde seu rosto da amada, pois tinha medo da cólera de sua mãe, Afrodite.
Ele havia recebido a ordem de amaldiçoar a mortal, mas seu desejo era
transforma-la em imortal, pois se afeiçoou àquele ser. Jesus vem ao mundo e
mostra o rosto de Deus à humanidade. Ele não esconde seu rosto, pois estava em
parceria com o Pai para juntos abençoarem aos mortais, dando-lhes vida eterna
(imortalidade). O Deus da Bíblia é o Deus que se revela, e não o que se
esconde. Ele deixa claro em todo o decorrer da narrativa bíblica que Ele quer
ser conhecido, em todas as gerações.
Outro ponto interessante no romance entre o deus e a mortal, é que segundo o mito Psique faz
sua própria jornada ao reino dos mortos a fim de salvar-se. Não é Eros que
resgata ou salva sua amada, mas através de seus próprios esforços a amada ganha
seu direito no panteão dos deuses. Na história da redenção, vemos o contrário,
Cristo fazendo a jornada ao inferno para resgatar sua amada (Igreja) da
condenação eterna.
O ser humano
sempre será incapaz de salvar a si mesmo. As escrituras afirmam:
“Todos pecaram e não conseguem alcançam o
padrão da glória de Deus.” (Romanos 3:23)
“Como sou miserável! Quem me libertará deste
corpo mortal dominado pelo pecado?” (Romanos 7:24)
É exatamente esse
ponto que diferencia o Cristianismo de todas as demais religiões. Os seres humanos
estão sempre tentando salvar a si mesmos, por meio de boas ações que são
contabilizadas. Os ensinos atuais dentro das ciências sociais e psicológicas é
a mesma do mito de Psique: “Salve-se a si mesmo”. Você não precisa esperar por
um salvador, pode ser que ninguém venha. Você é o protagonista de sua própria
história! Você é a parte mais importante. Você não precisa que um príncipe
venha para te salvar, salve-se a si mesma[5]!
Percebe como são
discursos parecidos, e que hoje está na boca de muita gente? Tem muita
religiosidade onde achamos que “não tem nada a ver”. Não há nenhum tipo de
ensino neutro! Precisamos estar conscientes dessa verdade para não nos comprometermos
com narrativas que nos distanciam do evangelho.
A irmã de Psique
Lewis traz a releitura
do mito por meio da narração da irmã mais velha de Psique. Orual, rainha de
Glome. A narrativa contempla a infância de Orual e sua outra irmã, e logo
depois a chegada de Psique, meia irmã de ambas. O rei de Glome, pai dessas três
meninas, é descrito como rude e muito violento. Após a morte deste, Orual passa
a governar o país, com a ajuda do chefe do exército, Bardia.
O ponto
interessante são as crenças de Orual a respeito dos sentimentos que nutre pelos
outros e a respeito de si mesma. Como citei anteriormente, ela faz uso de um
véu afim de esconder sua “feiura”. E dentro de todo o desenrolar da vida dessa
rainha, seus ressentimentos como mulher – por não ter se casado e nutrir
afeição por Bardia – e mãe[6],
Lewis nos mostra como é possível viver uma vida enganados a respeito de nós
mesmos.
O autoconhecimento
é um processo que só é possível por meio do conhecimento do nosso Criador, a
partir da perspectiva de que todo nosso ser caiu e necessitamos de salvação. O
conhecer a si mesmo precisa de consciência do pecado e suas consequências. Nos
sentimentos que chamamos de amor, por exemplo, muitas vezes os confundimos com
posse, controle e manipulação.
[...]
o conhecimento do cristão não se reduz ao entendimento de que Deus existe e é
todo-bondoso e todo-poderoso. É preciso ir além, ou seja, é necessário também
aprofundar o conhecimento de Deus e suas implicações para o autoconhecimento. A
maravilhosa bênção que a revelação divina reserva para aqueles que a conhecem é
a grande descoberta de que o Deus das Escrituras revela ao homem não somente o
verdadeiro Deus, mas também o verdadeiro homem.
(Inteligência
Humilhada – Jonas Madureira)
O significado de Psique
No grego clássico
a palavra Psique refere-se à alma, ao conjunto de emoções, intelecto e vontade.
Os gregos, por meio da escola de Platão, tinham uma perspectiva dual da vida e
do seres humanos, a parte material e a parte imaterial. Uma parte menos
excelente (corpo) e uma mais excelente (espírito).
É importante nos atentarmos para esse detalhe cultural, posto que, nossa mentalidade e cosmovisão (até mesmo cristã) foi muito afetada pelos gregos. Essa visão dualista das coisas se difere bastante da cosmovisão semítica (judaica), os óculos pelos quais a bíblia foi escrita. Quando temos essas palavras que se referem a alma, espírito e corpo, no grego, tanto na septuaginta (versão da bíblia judaica no grego) quanto no texto neotestamentário, temos uma referência à totalidade do ser ou sua parte mais profunda (que no ocidente chamamos de coração), vejamos alguns exemplos:
Ouve,
Israel, o Senhor, nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor, teu
Deus, de todo o teu coração, de toda tua alma e de toda a tua força.
(Deuteronômio 6:4-5)
Louva,
ó minha alma, ao Senhor. (Salmo 146:1)
O objetivo do
escritor bíblico não é tratar dessas partes separadamente, mas do ser humano de
modo integral. Não há essa separação entre parte encarnada e parte desencarnada
na mente do judeu a respeito do ser humano. Em muitos textos, principalmente os
poéticos, a utilização da parte pelo todo (metonímia) é muito comum. São as
famosas figuras de linguagem.
Conclusão
Se você ainda não
leu esse livro, ou nem se quer conhecia o mito de Eros e Psique, perdoe-me
pelos “spoilers”, deveria ter avisado no começo do texto, não é mesmo? Mas, o
que coloquei aqui foi um resumo do resumo de ambos. Portanto, se quiser
conhecer os detalhes, você pode ler o mito e também a obra de C. S. Lewis, “Até
que tenhamos rosto”[7].
[1]
Obra de Luiz Gaudino, pela editora FTD.
[2]
Segundo o panteão grego: deusa da beleza.
[3]
Segundo panteão grego: deus do amor.
[4]
Pregada por Timão e Pumba na animação “O Rei leão”.
[5] A
quebra de paradigma do príncipe encantado, pregado principalmente pela Disney
em seus filmes e releituras dos mitos dos irmãos Green.
[6] A
mãe de Psique morre durante o parto, assim, Orual cuida de Psique como se fosse
sua filha. Faz dela seu objeto de adoração e devoção.
[7]
Disponível pela editora Tomas Nelson Brasil.