segunda-feira, 25 de março de 2024

O Totem da Paz

  Louvem-te a ti, ó Deus, os povos; louvem-te os povos todos. Alegrem-se e regozijem-se as nações, pois julgarás os povos com equidade, e governarás as nações sobre a terra. Louvem-te a ti, ó Deus, os povos; louvem-te os povos todos.

(Salmos 67:3-5)






“O Totem da paz” é um clássico da missiologia[1]escrito por Don Richardson, teve sua primeira edição em 1972. O livro trata-se do testemunho de como o povo Sawi se rendeu ao Senhor. Um povo originário da Papua Nova Guiné, que até mais da metade do século XX nunca haviam tido contato com a civilização ocidental. Don Richardson era de origem canadense foi missionário, escritor e palestrante. Nasceu em 23 de junho de 1935 e faleceu, recentemente, em 23 de dezembro de 2018. Além desta, Richardson é autor de “O fator Melquisedeque” e “Senhores da Terra”. A seguir farei uma pequena resenha crítica do livro, portanto, já deixo um alerta de “spoiler”.

O livro divide-se em três partes, na primeira parte Richardson ambienta o leitor a respeito da cultura sawi e dos povos vizinhos que compartilham das mesmas tradições. Ele dá ênfase no culto à traição, uma tradição que envolvia planos habilidosos para vingar a morte de algum parente ou amigo que determinada tribo havia matado. Fazia parte do ritual o processo de enganar a vítima, fazendo-a acreditar que as desavenças eram coisas do passado e que agora a amizade e paz estavam estabelecidas. Todavia, o que está na mente do vingador é o “Tuwi asonai makaerin”, “engordar com amizade para o abate”. Quando a vítima tinha certeza de que estava segura e feliz, o vingador atacava arrancando sua cabeça. Toda a tribo se reunia para comer as partes da vítima, a cabeça era o troféu, pertencia à pessoa que tinha tido um papel crucial no plano de vingança.

É válido ressaltar que nessa primeira parte o autor lançou mão de sua licença poética para criar uma narrativa com lugares e personagens específicos, estes que provavelmente conheceu a partir dos relatos feitos pelos integrantes das tribos sawi ao redor da fogueira. Posto que, aqueles que participavam ativamente do culto à traição eram os heróis do povo, seus “feitos” eram contados de geração em geração. A narração descritiva de Richardson faz com que o leitor se sinta nas selvas da Papua Nova Guiné, completamente envolvido com o povo sawi.

 

Os seis anos de Richardson e sua família entre os Sawis

A parte dois e três do livro é o testemunho pessoal de Richardson, seu chamado, chegada à Papua Nova Guiné, seu processo de aquisição da língua, desenvolvimento de relacionamentos, desafios na pregação do evangelho e a miraculosa conversão desse povo ao Senhor. O ponto alto do livro e do testemunho do autor é justamente o grande desafio de falar sobre um Deus que foi traído por um dos seus melhores amigos, para um povo que venerava traidores. O herói da história de Jesus, para o povo sawi, em um primeiro momento, era Judas.

O impasse é vencido através de uma chave que Richardson encontrou na própria cultura sawi, “A criança da paz”. Dentro da cultura sawi o único modo de impedir o culto à traição era por meio da troca de crianças entre as duas aldeias (famílias) rivais, uma das famílias devia oferecer um de seus filhos, assim as crianças eram trocadas e recebidas. E enquanto aquela criança vivesse a paz estava estabelecida. Foi a partir dessa tradição que Richardson conseguiu resolver o mal entendido na história de Jesus e explicar melhor o evangelho para aquele povo.

Aqui vão algumas citações que considerei relevantes para o recrutamento e permanência do missionário em campo transcultural. Como também, a respeito dos pontos controversos na mudança cultural que esses povos originários vão sofre em contato com a cultura ocidental:

Ao falar àquele grupo de estudantes, Vine sentiu-se dominado por uma forte impressão de objetividade. As outras escolas que visitara em seu itinerário talvez pudessem se gabar de mais alto nível de escolaridade, e de alunos mais preparados que os daquele instituto cujo lema era: Formar e disciplinar soldados de Cristo. Mas ao fazer o apelo para a obra pioneira de fincar a bandeira do evangelho de Cristo no interior da Nova Guiné Holandesa, entre tribos isoladas e potencialmente hostis, ele estava cônscio de que o fator primordial a ser considerado não seria alta escolaridade e cultura, embora tais coisas não devessem ser absolutamente ignoradas. As qualidades essenciais que deveriam compor o caráter dos futuros pioneiros naquele trabalho seriam: uma fé inabalável, a autonegação e o cultivo de uma íntima comunhão com Deus.

Aqueles que defendem a tese de que os grupos tribais que ainda restam na terra sejam deixados intactos, não compreendem como tal ideia é ingênua. Neste mundo já não há lugar para que quem quer que seja possa ser deixado em paz. Já está mais do que provado que, se os missionários não forem a tais lugares - e eles vão para dar - madeireiros, caçadores de jacarés, mineradores, plantadores, etc., irão la - para tomar.

"Será que não estamos sendo guiados e impulsionados apenas por um sentimento muito humano de presunção?" E enquanto os sawis arrastavam a embarcação mais para a terra, impelindo a para a margem lamacenta do rio, ouvi a resposta, que partia de meu próprio coração. Era a paz, aquela paz que, mesmo que eu estivesse sendo levado apenas pela presunção, tinha um ponto a seu favor em um momento de crise, ela ainda se fazia presente. Então pensei: certamente, se minha motivação não viesse de Deus, aquela paz teria me abandonado agora! Sem se deixar pressionar pelo alarme que vinha de meus sentidos, aquela paz zombava das argumentações do raciocínio, e dava forças à certeza que havia no fundo do meu ser. (p.151)

"Missionário", indagava ela, "por que você veio aqui?" Era uma pergunta que eu ouvira muitas vezes dos lábios de incrédulos, e rebatera. Mas agora era o meu Senhor que a colocava diante de mim, e não havia meios de escapar a ela. […] Depois, então, respondi. "Senhor Jesus, é por ti que nos encontramos nesta sendo batizados não em água, mas na realidade dos sais. Isto é um novo batismo nesta obra que tu preparaste para nós, antes da criação do mundo. Conserva-nos fieis a ela e a ti. Capacita-nos com teu Espírito. (p.153-154)

 

Críticas e cuidado

O testemunho de Don Richardson é uma injeção de ânimo e fé para todos os seus leitores. Mas, quando nos deparamos com a realidade do campo transcultural, o processo parece ser mais lento e desanimador. Segundo os relatos de Richardson em seis anos de trabalho já haviam convertidos, batizados e parte do Novo Testamendo já traduzido. É fato que Deus é poderoso para operar milagres e mover da forma como Ele deseja, todavia, o que temos como maioria nos relatos missionários são anos e anos sem fruto. Muitos se dedicam ao trabalho com a certeza de que em algum momento o milagre de conversão e arrependimento irá alcançar seu povo.

Conheço missionários que passaram mais de vinte e cinco anos trabalhando na tradução e discipulado de povos sem bíblia, com uma cultura e ambientação similares aos sawis, que só tiveram seus primeiros batizados após trinta anos de trabalho e pregação. A palavra que podemos definir o testemunho de Richardson é MILAGRE, AVIVAMENTO. Deus já havia planejado a conversão do povo sawi para aquele tempo, e Richardson foi o instrumento usado pelo Senhor.

Outro ponto da obra que é necessário cuidado e cautela é o que Richardson, em uma obra a parte, vai chamar de “Fator Melquisedeque”. Entre os Sawis o “Fator Melquisedeque” foi a “Criança da paz” (Totem da Paz). A tese de Richardson é que cada cultura guarda elementos chaves que podem estar conectadas à grande narrativa bíblica, elementos que estão na cultura do povo, deixadas pelo próprio Deus para que o evangelho seja pregado e compreendido ali. O cuidado que o missionário deve ter aqui é com os sincretismos. O símbolo precisa de encaixar perfeitamente para que não haja nenhum mal entendido no processo.

 

 



[1] Área da teologia que estuda as missões transculturais.