Há alguns meses atrás
estava lendo Os irmãos Karamazov de
Dostoievski, um clássico russo que tornou-se literatura mundial. E me recordo
de o tempo todo, durante a leitura, esperar o herói da história, Aliocha, pisar
na bola e mostrar alguma falha em seu caráter. Quando me dei conta do que eu
estava fazendo, foi que a ficha caiu do quanto eu estava acostumada com o
perfil de heróis que a era pós-moderna trouxe para dentro dos filmes e livros
nas últimas décadas.
O clássico virou
romântico, que virou realista e que inspirou os precursores modernistas[1]. O
modernismo trouxe o anti-herói, no Brasil, conhecido como Macunaíma[2]. O
anti-herói é o herói com defeitos, o herói com falhas de caráter e valores, em
sua maioria contrários aos que eram enaltecidos pelas gerações anteriores.
Quando estudamos as raízes filosóficas dessas escolas e da produção cultural
dos últimos dois séculos, vamos entender que “o buraco é bem mais fundo” do que
imaginamos.
Nunca antes tivemos
tanto conforto, oportunidades para desenvolver nossas habilidades e dons. Nunca
antes tivemos o mundo literalmente na palma de nossas mãos, podemos estar
conectados à pessoas dos diversos cantos da terra em uma fração de segundos. A
distância tornou-se obsoleta. Mas, ao mesmo tempo, nunca presenciamos tanto
isolamento, individualismo, doenças relacionadas à mente e emoções. A produção
cultural de uma sociedade é só mais um meio pelo qual ela revela seu coração e
seus valores.
O
anti-herói
Talvez o anti-herói
mais famoso da modernidade (e continua na pós-modernidade), tanto nos
quadrinhos como nos cinemas é o Deadpool.
Isso quando falamos de uma das maiores produtoras de heróis de todos os tempos,
a Marvel Comic’s. Não sou especialista nessa franquia, pois não assisti a todos
os filmes produzidos pela mesma, e muito menos li os quadrinhos, todavia, é
impossível ignorar a cultura pop.
Não vejo problema em
termos anti-heróis em nossas narrativas e ficções, pois eles mostram muito bem
a realidade da humanidade caída, morta em seus delitos e pecados. Contudo,
quando o herói perde seu brilho, e passamos admirar e torcer mais por esses
“heróis” caídos, é onde realmente mora o problema. É a mesma história de nos
pegarmos, ao assistirmos uma novela/série, torcendo para que o casal se
divorcie porque os amantes são mais bonitos ou possuem “qualidades” superiores
aos cônjuges. O anti-herói é isso mesmo que você está pensando, é uma mistura
do vilão com o mocinho da história.
A Bíblia é um exemplo
interessante de muitos anti-heróis. Homens e mulheres caídos que suas histórias
apontam para a narrativa principal, a necessidade de um Messias, o verdadeiro
herói. O papel do anti-herói é apontar para o verdadeiro herói da história, o
Deus-homem. O papel do anti-herói é comprovar que a humanidade não pode
salvar-se a si mesmo, ela depende da intervenção divina. Pode parecer tema da
Escola Bíblica de Férias, mas essa é a mensagem do evangelho, não existe
salvação fora de Cristo. Quando nos distanciamos desse modelo de perfeição
vamos nos deparar com o que temos encontrado hoje nas narrativas e ficções,
heróis à imagem e semelhança da humanidade caída.
A
pós-modernidade e o enaltecimento do “salve-se a si mesmo”.
Uma cena importante nas
Escrituras, durante a crucificação de Jesus, é o momento em que os religiosos
passam diante da cruz zombando de Jesus e usam exatamente essa expressão:
“Salve-se a si mesmo!”. O único ser humano capaz de salvar a si mesmo, decidiu
não salvar a si mesmo, em obediência ao Pai. E hoje quando perguntamos às
nossas crianças e adolescentes, quem são seus heróis, a resposta vai ser essa:
“Eu sou o meu herói!”[3]. O
ceticismo plantado há duas gerações anteriores, cultivado pelo enaltecimento do
indivíduo, gerou a geração dos heróis de si mesmo.
É possível ver essa
verdade em algumas releituras dos contos de fada nos cinemas, como também as
novas histórias sem o famoso “felizes para sempre”. Ficções como As crônicas de gelo e fogo[4]
vieram para confirmar as conclusões dos pós-guerras, utopias humanas podem
virar distopias. Isso não deixa de ser verdade, entretanto, a intervenção
divina é real! Deus entrou na história do cosmo e está restaurando todas as
coisas para o louvor de sua glória! Ele continua sendo Senhor de todas as
coisas, e sim, o nosso “Felizes para sempre” está por vir.
Ser cristão é ter a
certeza de que SE nossos dias melhores [que estão por vir], não chegarem nessa
vida, eles estarão chegando com o Messias! Jesus está voltando para governar as
nações e restaurar a terra! Quer maior esperança escatológica do que esta?
Conclusão
A maior parte de nós
quando consumimos cultura pop não ligamos muito para o que aquele artefato
cultural (música, filmes, peças de teatro, livros, obras de arte...) está
falando, muito menos paramos para pensar sob qual linha filosófica foram
produzidos. Afinal de contas, pra que serve filosofia mesmo? A maior parte de nós,
quando nos conectamos a algum streaming (Netflix, Amazon, Disney, HBO...) em
nossos celulares, laptops ou mesmo televisão, é com o intuito de nos
desligarmos da realidade. Procuramos uma ficção que não nos proporcionem
reflexões profundas, porque estamos cansados de pensar.
Mas, a parte irônica
nisso tudo é que estamos consumindo projetos muito bem pensados, até mesmo
aquelas produções que parecem completamente ridículas e sem sentido, elas estão
comunicando e moldando formas de pensar. E a tal da filosofia é a forma como
esses pensamentos e ideias são sistematizados e explicados. Não existe produção
cultural neutra. Os heróis da geração pós-guerra morreram de overdose, os
heróis da minha geração querem mudar o mundo. Os heróis da geração atual é o
self (si). O papel do herói nas narrativas culturais são muito importantes,
pois, como você pode perceber, podem (de)formar a mentalidade de uma geração.
[1]
Aqui resumo de forma cadencial as escolas literárias e artísticas que tiveram
início a partir do Iluminismo (Renascimento) – Século XV.
[2]
Anti-herói da obra de Mario de Andrade, que em minha opinião é uma produção
genial. Todo missionário(a) ou pastor(a) brasileiro(a) deveria ler Macunaíma.
[3] Capital
Moral – Roel Kuiper.
[4]
Popularmente conhecida por sua saga na HBO “A guerra dos Tronos – Games of
thrones” e atualmente a série “Casa do dragão”.