O SENHOR é o meu pastor,
O
Salmo 23 é um dos mais populares por todo o mundo. É um Salmo recitado por
pessoas famosas, das mais diversas confissões de fé; além, ainda, de ser muito usado como
amuleto de proteção em muitas casas, nas regiões do interior do Brasil. Mês
passado, nossa equipe de tradutores, passou por um treinamento em Tradução Oral
das Escrituras, o último dos Salmos que traduzimos durante esse período,
foi o nosso amado Salmo 23. Em meus primeiros anos, vivendo no Oeste da África,
minhas meditações e experiências de oração com esse Salmo, foram profundas e
marcantes. Mas, dessa vez, os estudos do significado das palavras
em seu contexto, me proporcionaram uma refeição deliciosa, com sabores
totalmente novos. Aspectos como a simples divisão do Salmo em duas partes [O
pastor e suas ovelhas / O anfitrião e seu convidado de honra para o
banquete], fez com o que o texto tivesse um novo brilho, me levando a apreciar
a beleza dessas duas figuras e ambientes de modo mais cuidadoso e
contemplativo.
Cresci
em uma região do Brasil onde a criação de ovelhas e cabras não é comum, a primeira
vez que vi uma ovelha pessoalmente, foi por volta dos quatorze/quinze anos, em uma das festas de Junho organizada pela igreja. Aqui
no Oeste da África, as ovelhas e cabras estão por toda parte, mas a realidade
da ovelha africana e de seu pastor é bem diferente do contexto desse Salmo. Portanto, foi
bem interessante conversar com nossos tradutores e pensarmos juntos na melhor
maneira de expressarmos palavras como “verdejantes”, “Seu nome”, “vale da
sombra da morte”, “vara e cajado”, “ungir com óleo”, “cálice que transborda”, na língua do povo.
O Contexto histórico do Pastor e do Anfitrião
Muitos
dos que estudam a respeito do Antigo Oriente Próximo[1]
afirmam que a figura do pastor, é uma metáfora da realeza. Portanto, quando o
salmista faz uso dessa metáfora, ele está afirmando que Deus é o seu Rei. É
possível fazer essa afirmação, tendo como base outros textos do Antigo Testamento
como, Jeremias 23:1-4 e Ezequiel 34:1-10, onde o profeta traz uma severa
exortação aos reis e líderes de Israel.
Além das próprias Escrituras, temos texto históricos, como o epílogo do famoso Código de Hamurabi, que faziam uso dessa mesma linguagem. O povo era
o rebanho e o rei o pastor que os conduzia a pastos verdejantes: “Procurei para
eles lugares pacíficos [...] fiz com que o povo de todas as colônias repousasse
em pastos seguros”[2].
Outra evidência interessante desse imaginário, é a descrição de Marduk[3]
como aquele que provê locais de pastagem e bebida.
Portanto,
a figura do pastor sendo usada para se referir a Deus, não era uma novidade para
os primeiros do Salmo davídico. Deus sempre fez questão de, além de falar a língua
dos homens, usar figuras e ilustrações que faziam parte do imaginário de seus
interlocutores. Esse Salmo mostra algo que era sólido na crença do povo de
Israel: “O Deus que criou céus e terra, o mar e a porção seca, aquele que
conduziu Israel para fora do cativeiro no Egito – esse Senhor grandioso e
cósmico também cuida e pastoreia o indivíduo”[4].
Na
segunda parte do Salmo temos a figura do Anfitrião. Era parte da cultura da
época a hospitalidade extravagante, principalmente quando se tratava da realeza. Óleos aromáticos eram usados para perfumar o indivíduo e o
ambiente, eram meios de abrandar o calor e a poeira sempre presentes naquela região. As
azeitonas e as uvas eram alimentos básicos na alimentação do povo do Antigo
Oriente Próximo, por isso que o vinho será sempre um alimento que fará parte da
mesa.
A jornada da ovelha ao lado do Bom
pastor
Essa
mesma imagem do Rei-pastor é usada no Novo Testamento, por meio de Jesus, o bom
pastor (João 10). O que torna uma mensagem poderosa e relevante, não é somente
o conteúdo, mas a forma como vamos transmitir essa mensagem. Os tipos de
recursos linguísticos usados ao compartilhar a mensagem, faz toda a
diferença. Jesus usou as mesmas metáforas que Deus havia usado durante toda sua
jornada com o povo de Israel. Ele disse de forma muito bonita e com todas as
letras: Eu sou o Rei-pastor do Salmo 23, eu sou o Rei pastor que lava os seus
pés e te convida para jantar. Eu sou o Rei-anfitrião que tem sua cabeça e pés
ungidos em preparação para o martírio, porque o bom pastor é aquele que dá a
vida pelas suas ovelhas.
Quando
visualizamos a geografia e vegetação das regiões montanhosas e áridas que Davi
se inspirou para escrever esse texto, é possível compreender que os “pastos
verdejantes”, são locais específicos de vegetação, da mesma forma que as “águas
tranquilas”. Locais que colocariam as ovelhas em completa vulnerabilidade, ante a um
predador, no momento em que estivessem se alimentando. Ou seja, sem o pastor, as
ovelhas jamais conseguiriam sobreviver nas regiões montanhosas do Antigo
Oriente. É exatamente assim que o salmista se coloca diante do Senhor
Deus, vulnerável e completamente dependente do seu pastor.
A
imagem do pastor conduzindo a ovelha tem uma implicação que ultrapassa cuidado
e sustento pessoal, ela também fala da própria jornada de salvação de cada um
de nós. O pastor nos conduz pelo caminho correto (justiça/retidão), pois é a
Sua própria reputação (nome) que está em jogo. Ou seja, se há algum mérito em
estarmos andando no caminho que agrada a Deus, esse mérito é todo do bom pastor
e de sua maravilhosa graça. Ser o povo que carrega o nome de Deus, como Deus
chamou Israel para ser, é ter a segurança de que da mesma forma que Ele
prometeu estar com Jacó, com o jovem Jeremias e o povo de Israel durante o
período do exílio (Gn 28:15, Jer 1:8, Is 41:10, 43:5), Ele continua presente
com todos aqueles que tem perseverado na missão Dele (Mt 28:20, Cl 2:5, At
18:10).
A
presença do pastor nos ajuda a não ter medo de nenhum mal, seja a cova dos
leões ou o coliseu, não haverá temor, pois Ele está conosco. Seja para que os
leões tenham suas bocas fechadas e possamos experimentar um grande livramento,
ou para ter nosso corpo queimado em praça pública, “...não temerei...pois estais comigo”.
Conclusão – a mesa posta
É
possível imaginar a cena de um rei que recebe um de seus soldados (comandantes)
para o jantar, pois temos os inimigos (do rei e do salmista) rendidos, diante
da mesa. Como bom anfitrião, o rei ordena que a cabeça do seu servo seja ungida
(refrescada) com óleo perfumado. O pacto estabelecido entre Deus e seu povo,
foi muito semelhante ao sistema de vassalagem que tivemos durante a Idade
Média. E a imagem desse Salmo evoca exatamente isso, Deus como o grande
Pastor-Rei e o salmista como um vassalo desse Rei[5].
Como
qualquer metáfora, podemos ter nessa cena mais de um significado. É possível
também imaginar essa mesa preparada, como a mesa do banquete escatológico
descrito em Isaías 55 e a mesa das bodas do cordeiro descritas em Mateus
22:1-14 e Apocalipse 19:7-9. A mesa em que celebraremos para sempre a vitória
do Cordeiro sobre a morte, a injustiça e toda a destruição que o pecado causou.
Será a mesa que celebraremos o reinado do Pastor-Rei, por toda a eternidade!
[1] Esse
é o termo usado para se referir a região de onde apareceram as civilizações
anteriores às clássicas, na região atualmente denominada Oriente Médio, do
período que vai desde a Idade do Bronze até à expansão dos Persas no século VI
a.C.
[2] E. J. Young, R. K. Harrison e
Robert L. Hubbard Jr., The New International Commentary on the Old Testament
(Grand Rapids, MI; Cambridge, Reino Unido: William B. Eerdmans Publishing
Company, 2014), 241.
[3] Um
dos principais deuses do panteão babilônico.
[4] Rolf A. Jacobson e Beth Tanner,
“Book One of the Psalter: Psalms 1-41” (Salmo 1-41), em The Book of Psalms (O
Livro dos Salmos), org. E. J. Young, R. K. Harrison e Robert L. Hubbard Jr.,
The New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, MI;
Cambridge, Reino Unido: William B. Eerdmans Publishing Company, 2014), 240-241.
[5] Rolf A. Jacobson e Beth
Tanner, “Book One of the Psalter:
Psalms 1–41”, in The Book of Psalms, org. E. J. Young, R.
K. Harrison, e Robert L. Hubbard Jr., The New International Commentary on the
Old Testament (Grand Rapids, MI; Cambridge, U.K.: William B. Eerdmans
Publishing Company, 2014), 238.