Lucas 15 talvez seja um dos textos mais famosos das Escrituras, foi texto base para milhares de sermões ao redor do mundo, inspiração para a produção de músicas, pinturas e outros tipos de artefatos culturais, por artistas de diferentes épocas. Rembrandt é o responsável pela obra a cima, um dos quadros mais famosos do Barroco[1] europeu. Rembrandt foi um pintor holandês que nasceu no ano de 1606. Durante sua vida pitou muitos quadros com temas bíblicos. Uma característica interessante de seus trabalhos, é que em muitos de seus quadros, ele pintava a si mesmo no ambiente da composição. Ele se inseria na cena pintada.
Na obra em questão,
temos o filho mais novo, sendo abraçado e recebido pelo pai. Do lado direito do
quadro, o filho mais velho está em pé com mãos fechadas, assim como seu
semblante e seu coração. No fundo, atrás da pilastra está o próprio Rembrandt,
observando a cena com um aspecto curioso e contemplativo. Semana passada, nossa
equipe de tradução terminou esse capitulo de Lucas, no formato oral. No final de Janeiro fizemos
a primeira parábola desse mesmo capítulo, A ovelha perdida. Nas primeiras
duas semanas desse mês fizemos o restante do capítulo.
Essas três parábolas do
capítulo 15 do evangelho de Lucas possuem a mesma temática, o perdido que foi
encontrado. Há alguns comentaristas que vão olhar esse capítulo, como uma parábola só. Jesus faz questão de repetir três vezes, usando ilustrações
diferentes, para falar sobre a mesma coisa, o propósito pelo qual Ele veio à
terra, resgatar aquele que estava perdido. Ele descortina diante de todos os
seus ouvintes o coração de Deus Pai. Ele começa de forma corriqueira, usando
bens de valor precioso, até chegar na parte escandalosa, fazendo com que seus
ouvintes fiquem realmente surpresos com o Deus que eles achavam conhecer.
Por
que Jesus contou essa(s) parábola(s)?
A resposta está logo no
início do capítulo 15: “Cobradores de
impostos e outros pecadores vinham ouvir Jesus ensinar. Os fariseus e mestres
da lei o criticavam, dizendo: “Ele se reúne com pecadores e até come com eles!”.
Jesus responde a crítica dos religiosos de sua época, através de um recurso
muito usado pela maioria dos mestres judeus, parábolas (histórias
comparativas).
Por mais que o gênero literário aqui, seja classificado como uma espécie de narrativa, os famosos paralelismos[2] (repetições) estão presentes nesse capítulo. Os paralelismos são recursos poéticos que tinha o propósito de enfatizar o ponto central do ensino, como também facilitar a memorização, posto que, a maior parte dos ouvintes não sabia ler ou muito menos tinha acesso a livros. Nessa parábola (ou nessas três parábolas), gostaria de ressaltar apenas um dos paralelismos usados por Jesus nos versos 6-7, 9-10: E, chegando a casa, convoca os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha (moeda) perdida. Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende [...]". Nos versos 23-24 e 32 temos o mesmo paralelo, o perdido que foi achado e a alegria de Deus em receber seu filho de volta. Todavia, no último versículo, Jesus deixa a parábola em aberto, com uma pergunta implícita: "Você (filho mais velho), vai se alegrar com o Pai, ou vão continuar de fora da festa?". Dessa forma, o mestre Galileu ensina a todos a respeito de Deus, responde seus acusadores e ao mesmo tempo os convida ao arrependimento. Genial, não é mesmo?
A
Ovelha
Como compartilhei no
texto do mês de Fevereiro, a respeito do Salmo 23[3], a
figura do pastor era muito usada como metáfora para os reis do Antigo Oriente
Próximo. Jesus é Deus que se fez carne, para trazer de volta aqueles que
pertencem ao Pai, mas que se perderam ao longo da jornada. Jesus é o rei-pastor
que sai para buscar as ovelhas que estão faltando em seu aprisco.
A
Dracma
A moeda perdida dessa parábola não era uma moeda qualquer, era parte do dote marital recebido no dia do casamento[4]. O dote foi e continua sendo parte dos costumes na região do Oriente Médio. As mulheres costumavam usar uma espécie de touca com as moedas do dote, penduradas. Provavelmente foi esse tipo de moeda que a mulher da parábola havia perdido. Ela acende uma lamparina, e procura cuidadosamente em cada canto de sua casa, coberta pela escuridão. Não é em vão a festa com a vizinhança, após encontrar seu precioso tesouro de casamento.
Aqui, Deus compara a si mesmo com essa mulher, que perdeu algo muito precioso e precisa desesperadamente encontrar. No versículo em que a mulher encontra a moeda e se alegra: E, quando a encontrar, reunirá as amigas e vizinhas e dirá: ‘Alegrem-se comigo, pois encontrei a minha moeda perdida!’. Da mesma forma, há alegria na presença dos anjos de Deus quando um único pecador se arrepende”, a ênfase de Jesus é na alegria de Deus quando um pecador se arrepende. Por que? Porque a maior parte dos judeus ouviam o contrário. Havia um ditado judaico, provavelmente conhecido pelos primeiros ouvintes dessa parábola: “Há alegria diante de Deus quando aqueles que o provocam perecem (morrem) do mundo” (Sifra Numbers 18, 8 §117 [37a])[5]. Quando Jesus ressalta a alegria de Deus ao ver pecadores se arrependendo, ele mostra que esse ditado não estava correto.
O
Filho
Então saiu dali
e voltou para a casa do pai.
— Quando o rapaz
ainda estava longe de casa, o pai o avistou. E, com muita pena do filho,
correu, e o abraçou, e beijou. E o filho disse: “Pai, pequei contra Deus e
contra o senhor e não mereço mais ser chamado de seu filho!”
— Mas o pai
ordenou aos empregados: “Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Ponham
um anel no dedo dele e sandálias nos seus pés. Também tragam e matem o bezerro
gordo. Vamos começar a festejar porque este meu filho estava morto e viveu de
novo; estava perdido e foi achado.” (v.20-23 NTLH)
Na terceira parábola,
Jesus deixa todos os religiosos de cabelo em pé! Tanto os de sua época, como os
da atualidade. Jesus faz questão de trazer em sua narrativa os “terríveis
pecados do filho”. Ele pede a herança com o pai ainda vivo, segundo a lei
anterior a mosaica, como filho mais novo ele não tinha prioridade na herança do
pai e muito menos direito de requere-la com o pai vivo. O filho vai viver sua
vida e quando começa a sofrer as consequências de suas escolhas, aceita cuidar
de porcos, um animal considerado impuro para os judeus. Segundo o relato de
Jesus, quando o filho volta para casa ele estava sem sapatos, roupas
provavelmente em farrapos. A limpeza era algo muito importante para as práticas
cerimoniais, para a comunhão no Templo e sinagogas. Algo completamente
repugnante para a elite religiosa da época.
Quando olhamos para a
figura do pai, temos pontos importantes a respeito do contexto da época,
primeiro deles, receber e abraçar uma pessoa nas condições que o filho mais
jovem voltou para casa, era contaminar-se com coisas impuras. Segundo, um
senhor de idade jamais poderia correr em público, era contra as regras sociais[6].
Terceiro, aceitar o filho de volta como escravo era completamente aceitável,
mas restabelecê-lo na posição de filho, era inadmissível.
Havia uma parábola, contada pelos mestres judeus, parecida com a que Jesus
havia utilizado. O final, contudo, era bem diferente. O filho era aceito na
casa do pai, como um de seus empregados. Essa era a forma de ensinar obediência
e respeito, era necessário fazer para merecer. Jesus mostra o inexplicável amor
de Deus na forma “exagerada” como o pai recebe seu filho. Ele beija o filho,
sinal de perdão. Roupas, sapatos e anel, a posição de filho que lhe pertencia. Um
banquete com o novilho que estava engordando para alguma ocasião especial do
ano, carne era luxo.
Na parte final da história
temos o filho mais velho, que representava parte dos ouvintes de Jesus, aqueles
que se consideravam santos e completamente perfeitos. O problema do filho mais
velho era um pouco mais sério que o do filho mais novo, o mérito próprio. Ele
não tinha olhos para ver que também precisava de um salvador, que ele também
estava morto em seus delitos e pecados. O fato de não se alegrar com o retorno
do irmão, era sinal de que ele nunca tinha feito parte da família.
Na fala do filho mais novo é possível ver quebrantamento e respeito, na nossa
linguagem atual, é como se ele usasse a palavra “senhor”, para se referir ao
pai. Na fala do filho mais velho, ele fala com o pai como se fosse seu igual,
sem o costume formal da época. Ele não reconhece o filho mais novo como seu
irmão, e acrescenta pecados (gastar dinheiro com prostitutas) na conta do irmão
que não foram citados na narrativa de Jesus.
O ponto central das
três parábolas, é o mesmo “quando um pecador se arrepende/muda de vida”. A
alegria de Deus, quando o perdido é achado. Se essa é a alegria de Deus, essa
também deve ser a alegria daqueles que se dizem parte da família de Deus. A
parábola termina com o paralelismo em aberto: Então o pai veio para fora e insistiu com ele para que entrasse. [...]
Então o pai respondeu: “Meu filho, você está sempre comigo, e tudo o que é meu
é seu. Mas era preciso fazer esta festa para mostrar a nossa alegria. Pois este
seu irmão estava morto e viveu de novo; estava perdido e foi achado.
(v.30-35)
A pergunta de Jesus
para os mestres da lei e os diferentes líderes religiosos da época era: Vocês
vão participar da festa? Ou vão continuar do lado de fora? Vocês vão se alegrar
com Deus ou vão continuar achando que estão com a razão? Deus sempre rejeitará
o coração altivo e jamais resistirá àquele que se quebranta.
Conclusão
C. S. Lewis, em sua obra
Surpreendido pela alegria, uma espécie de autobiografia, relata sua volta para
casa (conversão à Jesus) usando a figura do filho mais novo, da parábola de
Lucas 15: Cedi então no período letivo
posterior a Páscoa de 1929, admitindo que Deus era Deus e ajoelhei-me e orei.
Talvez naquela noite o mais reprimido e relutante convertido de toda a
Inglaterra, não percebi então o que se revela hoje a coisa mais ofuscante e óbvia,
a humildade divina que aceita um convertido, mesmo em tais circunstâncias. O
filho pródigo a final caminhava para casa com as próprias pernas, mas quem é
que pode respeitar de fato o amor que abre os portões a um pródigo que é
arrastado para dentro, esperneando, lutando ressentido e girando os olhos em
torno a procura de uma chance de fuga[7].
É interessante a
análise de Lewis a respeito de si mesmo no dia de sua conversão, pois ela
mostra que Deus sempre terá todo o mérito! O que temos a oferecer sempre será
muito pouco, sujo e inadequado. É exatamente isso que nos diferencia do Deus
Criador! Ele é suficiente, do começo ao fim da nossa salvação. Assim como C.S.
Lewis foi surpreendido pela alegria em meio ao seu ceticismo, milhares de
pessoas ao redor do mundo tem experimentado a alegria de voltar para a casa, de
ser chamado de filho. Deus, o Pastor-rei tem ido atrás de suas ovelhas, porque
cada uma delas vale muito! Deus é humilde e recebe a nossa pequena fé, o nosso
coração cheio de dúvidas e questionamentos. Sua recepção será sempre com festa!
[1]
Escola literária/artística na qual seus artistas (escritores, pintores e afins)
representavam aspectos importantes do dualismo: teocentrismo (Deus no centro) x
Antropocentrismo (homem no centro). Seus temas eram de maioria religiosa, teve
início no século XVI e durou até meados do século XVII.
[2] Se
você quer saber mais sobre isso, lei: https://www.stjedwards.com/_files/ugd/aab8fd_67a6a0e4eb2a41baab49356ad3516468.pdf
[3]
Você pode ler mais aqui: https://mentes-renovadasmay.blogspot.com/2025/02/o-pastor-rei-salmo-23.html
[4] Robert H. Gundry, A Survey of the
New Testament, Fifth Edition (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2012), 265.
[5]
Idem.
[6] Robert H. Gundry, A Survey of the New Testament,
Fifth Edition (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2012), 266.
[7] Surpreendido
pela alegria – C. S Lewis, editora Thomas Nelson Brasil.