sexta-feira, 18 de abril de 2025

ELE VEIO BUSCAR O QUE ESTAVA PERDIDO



“A dureza de Deus é mais suave que a suavidade dos homens.
E sua coerção é nossa libertação.” (C. S. Lewis)




Lucas 15 talvez seja um dos textos mais famosos das Escrituras, foi texto base para milhares de sermões ao redor do mundo, inspiração para a produção de músicas, pinturas e outros tipos de artefatos culturais, por artistas de diferentes épocas. Rembrandt é o responsável pela obra a cima, um dos quadros mais famosos do Barroco[1] europeu. Rembrandt foi um pintor holandês que nasceu no ano de 1606. Durante sua vida pitou muitos quadros com temas bíblicos. Uma característica interessante de seus trabalhos, é que em muitos de seus quadros, ele pintava a si mesmo no ambiente da composição. Ele se inseria na cena pintada.

Na obra em questão, temos o filho mais novo, sendo abraçado e recebido pelo pai. Do lado direito do quadro, o filho mais velho está em pé com mãos fechadas, assim como seu semblante e seu coração. No fundo, atrás da pilastra está o próprio Rembrandt, observando a cena com um aspecto curioso e contemplativo. Semana passada, nossa equipe de tradução terminou esse capitulo de Lucas, no formato oral. No final de Janeiro fizemos a primeira parábola desse mesmo capítulo, A ovelha perdida. Nas primeiras duas semanas desse mês fizemos o restante do capítulo.

Essas três parábolas do capítulo 15 do evangelho de Lucas possuem a mesma temática, o perdido que foi encontrado. Há alguns comentaristas que vão olhar esse capítulo, como uma parábola só. Jesus faz questão de repetir três vezes, usando ilustrações diferentes, para falar sobre a mesma coisa, o propósito pelo qual Ele veio à terra, resgatar aquele que estava perdido. Ele descortina diante de todos os seus ouvintes o coração de Deus Pai. Ele começa de forma corriqueira, usando bens de valor precioso, até chegar na parte escandalosa, fazendo com que seus ouvintes fiquem realmente surpresos com o Deus que eles achavam conhecer.

 

Por que Jesus contou essa(s) parábola(s)?

A resposta está logo no início do capítulo 15: “Cobradores de impostos e outros pecadores vinham ouvir Jesus ensinar. Os fariseus e mestres da lei o criticavam, dizendo: “Ele se reúne com pecadores e até come com eles!”. Jesus responde a crítica dos religiosos de sua época, através de um recurso muito usado pela maioria dos mestres judeus, parábolas (histórias comparativas).

Por mais que o gênero literário aqui, seja classificado como uma espécie de narrativa, os famosos paralelismos[2] (repetições) estão presentes nesse capítulo. Os paralelismos são recursos poéticos que tinha o propósito de enfatizar o ponto central do ensino, como também facilitar a memorização, posto que, a maior parte dos ouvintes não sabia ler ou muito menos tinha acesso a livros. Nessa parábola (ou nessas três parábolas), gostaria de ressaltar apenas um dos paralelismos usados por Jesus nos versos 6-7, 9-10: E, chegando a casa, convoca os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha (moeda) perdida. Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende [...]". Nos versos 23-24 e 32 temos o mesmo paralelo, o perdido que foi achado e a alegria de Deus em receber seu filho de volta. Todavia, no último versículo, Jesus deixa a parábola em aberto, com uma pergunta implícita: "Você (filho mais velho), vai se alegrar com o Pai, ou vão continuar de fora da festa?". Dessa forma, o mestre Galileu ensina a todos a respeito de Deus, responde seus acusadores e ao mesmo tempo os convida ao arrependimento. Genial, não é mesmo?

 

A Ovelha

Como compartilhei no texto do mês de Fevereiro, a respeito do Salmo 23[3], a figura do pastor era muito usada como metáfora para os reis do Antigo Oriente Próximo. Jesus é Deus que se fez carne, para trazer de volta aqueles que pertencem ao Pai, mas que se perderam ao longo da jornada. Jesus é o rei-pastor que sai para buscar as ovelhas que estão faltando em seu aprisco.

 

A Dracma

A moeda perdida dessa parábola não era uma moeda qualquer, era parte do dote marital recebido no dia do casamento[4]. O dote foi e continua sendo parte dos costumes na região do Oriente Médio. As mulheres costumavam usar uma espécie de touca com as moedas do dote, penduradas. Provavelmente foi esse tipo de moeda que a mulher da parábola havia perdido. Ela acende uma lamparina, e procura cuidadosamente em cada canto de sua casa, coberta pela escuridão. Não é em vão a festa com a vizinhança, após encontrar seu precioso tesouro de casamento.

Aqui, Deus compara a si mesmo com essa mulher, que perdeu algo muito precioso e precisa desesperadamente encontrar. No versículo em que a mulher encontra a moeda e se alegra: E, quando a encontrar, reunirá as amigas e vizinhas e dirá: ‘Alegrem-se comigo, pois encontrei a minha moeda perdida!’. Da mesma forma, há alegria na presença dos anjos de Deus quando um único pecador se arrepende”, a ênfase de Jesus é na alegria de Deus quando um pecador se arrepende. Por que? Porque a maior parte dos judeus ouviam o contrário. Havia um ditado judaico, provavelmente conhecido pelos primeiros ouvintes dessa parábola: “Há alegria diante de Deus quando aqueles que o provocam perecem (morrem) do mundo (Sifra Numbers 18, 8 §117 [37a])[5]. Quando Jesus ressalta a alegria de Deus ao ver pecadores se arrependendo, ele mostra que esse ditado não estava correto. 

 

O Filho

Então saiu dali e voltou para a casa do pai.

— Quando o rapaz ainda estava longe de casa, o pai o avistou. E, com muita pena do filho, correu, e o abraçou, e beijou. E o filho disse: “Pai, pequei contra Deus e contra o senhor e não mereço mais ser chamado de seu filho!”

— Mas o pai ordenou aos empregados: “Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Ponham um anel no dedo dele e sandálias nos seus pés. Também tragam e matem o bezerro gordo. Vamos começar a festejar porque este meu filho estava morto e viveu de novo; estava perdido e foi achado.” (v.20-23 NTLH)

 

Na terceira parábola, Jesus deixa todos os religiosos de cabelo em pé! Tanto os de sua época, como os da atualidade. Jesus faz questão de trazer em sua narrativa os “terríveis pecados do filho”. Ele pede a herança com o pai ainda vivo, segundo a lei anterior a mosaica, como filho mais novo ele não tinha prioridade na herança do pai e muito menos direito de requere-la com o pai vivo. O filho vai viver sua vida e quando começa a sofrer as consequências de suas escolhas, aceita cuidar de porcos, um animal considerado impuro para os judeus. Segundo o relato de Jesus, quando o filho volta para casa ele estava sem sapatos, roupas provavelmente em farrapos. A limpeza era algo muito importante para as práticas cerimoniais, para a comunhão no Templo e sinagogas. Algo completamente repugnante para a elite religiosa da época.

Quando olhamos para a figura do pai, temos pontos importantes a respeito do contexto da época, primeiro deles, receber e abraçar uma pessoa nas condições que o filho mais jovem voltou para casa, era contaminar-se com coisas impuras. Segundo, um senhor de idade jamais poderia correr em público, era contra as regras sociais[6]. Terceiro, aceitar o filho de volta como escravo era completamente aceitável, mas restabelecê-lo na posição de filho, era inadmissível.

Havia uma parábola, contada pelos mestres judeus, parecida com a que Jesus havia utilizado. O final, contudo, era bem diferente. O filho era aceito na casa do pai, como um de seus empregados. Essa era a forma de ensinar obediência e respeito, era necessário fazer para merecer. Jesus mostra o inexplicável amor de Deus na forma “exagerada” como o pai recebe seu filho. Ele beija o filho, sinal de perdão. Roupas, sapatos e anel, a posição de filho que lhe pertencia. Um banquete com o novilho que estava engordando para alguma ocasião especial do ano, carne era luxo.

Na parte final da história temos o filho mais velho, que representava parte dos ouvintes de Jesus, aqueles que se consideravam santos e completamente perfeitos. O problema do filho mais velho era um pouco mais sério que o do filho mais novo, o mérito próprio. Ele não tinha olhos para ver que também precisava de um salvador, que ele também estava morto em seus delitos e pecados. O fato de não se alegrar com o retorno do irmão, era sinal de que ele nunca tinha feito parte da família.

Na fala do filho mais novo é possível ver quebrantamento e respeito, na nossa linguagem atual, é como se ele usasse a palavra “senhor”, para se referir ao pai. Na fala do filho mais velho, ele fala com o pai como se fosse seu igual, sem o costume formal da época. Ele não reconhece o filho mais novo como seu irmão, e acrescenta pecados (gastar dinheiro com prostitutas) na conta do irmão que não foram citados na narrativa de Jesus.

O ponto central das três parábolas, é o mesmo “quando um pecador se arrepende/muda de vida”. A alegria de Deus, quando o perdido é achado. Se essa é a alegria de Deus, essa também deve ser a alegria daqueles que se dizem parte da família de Deus. A parábola termina com o paralelismo em aberto: Então o pai veio para fora e insistiu com ele para que entrasse. [...] Então o pai respondeu: “Meu filho, você está sempre comigo, e tudo o que é meu é seu. Mas era preciso fazer esta festa para mostrar a nossa alegria. Pois este seu irmão estava morto e viveu de novo; estava perdido e foi achado. (v.30-35)

A pergunta de Jesus para os mestres da lei e os diferentes líderes religiosos da época era: Vocês vão participar da festa? Ou vão continuar do lado de fora? Vocês vão se alegrar com Deus ou vão continuar achando que estão com a razão? Deus sempre rejeitará o coração altivo e jamais resistirá àquele que se quebranta.

 

Conclusão

C. S. Lewis, em sua obra Surpreendido pela alegria, uma espécie de autobiografia, relata sua volta para casa (conversão à Jesus) usando a figura do filho mais novo, da parábola de Lucas 15: Cedi então no período letivo posterior a Páscoa de 1929, admitindo que Deus era Deus e ajoelhei-me e orei. Talvez naquela noite o mais reprimido e relutante convertido de toda a Inglaterra, não percebi então o que se revela hoje a coisa mais ofuscante e óbvia, a humildade divina que aceita um convertido, mesmo em tais circunstâncias. O filho pródigo a final caminhava para casa com as próprias pernas, mas quem é que pode respeitar de fato o amor que abre os portões a um pródigo que é arrastado para dentro, esperneando, lutando ressentido e girando os olhos em torno a procura de uma chance de fuga[7].

É interessante a análise de Lewis a respeito de si mesmo no dia de sua conversão, pois ela mostra que Deus sempre terá todo o mérito! O que temos a oferecer sempre será muito pouco, sujo e inadequado. É exatamente isso que nos diferencia do Deus Criador! Ele é suficiente, do começo ao fim da nossa salvação. Assim como C.S. Lewis foi surpreendido pela alegria em meio ao seu ceticismo, milhares de pessoas ao redor do mundo tem experimentado a alegria de voltar para a casa, de ser chamado de filho. Deus, o Pastor-rei tem ido atrás de suas ovelhas, porque cada uma delas vale muito! Deus é humilde e recebe a nossa pequena fé, o nosso coração cheio de dúvidas e questionamentos. Sua recepção será sempre com festa!

 

 



[1] Escola literária/artística na qual seus artistas (escritores, pintores e afins) representavam aspectos importantes do dualismo: teocentrismo (Deus no centro) x Antropocentrismo (homem no centro). Seus temas eram de maioria religiosa, teve início no século XVI e durou até meados do século XVII.

[3] Você pode ler mais aqui: https://mentes-renovadasmay.blogspot.com/2025/02/o-pastor-rei-salmo-23.html

[4] Robert H. Gundry, A Survey of the New Testament, Fifth Edition (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2012), 265.

[5] Idem.

[6] Robert H. Gundry, A Survey of the New Testament, Fifth Edition (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2012), 266.

[7] Surpreendido pela alegria – C. S Lewis, editora Thomas Nelson Brasil.


sábado, 15 de fevereiro de 2025

O Pastor-Rei [Salmo 23]

 O SENHOR é o meu pastor,

E eu não terei falta de nada.
Ele me faz repousar em pastos com grama nova
E me conduz a águas tranquilas.
Ele restaura a minha vida,
e me ajuda a andar corretamente,
por causa de Sua reputação.
Mesmo que eu preciso andar pelo vale escuro,
não temerei mal algum,
porque você está comigo;
A tua vara e o teu cajado me confortam.

Você prepara uma mesa
Na presença dos meus inimigos.
Você refresca minha cabeça com óleo;
E o meu cálice transborda.
Certamente, [Sua] bondade e o amor leal me seguirão
Todos os dias da minha vida,
E eu habitarei na casa de Deus para sempre.


Exhortatio ad Laudem Dei - 1420

O Salmo 23 é um dos mais populares por todo o mundo. É um Salmo recitado por pessoas famosas, das mais diversas confissões de fé; além, ainda, de ser muito usado como amuleto de proteção em muitas casas, nas regiões do interior do Brasil. Mês passado, nossa equipe de tradutores, passou por um treinamento em Tradução Oral das Escrituras, o último dos Salmos que traduzimos durante esse período, foi o nosso amado Salmo 23. Em meus primeiros anos, vivendo no Oeste da África, minhas meditações e experiências de oração com esse Salmo, foram profundas e marcantes. Mas, dessa vez, os estudos do significado das palavras em seu contexto, me proporcionaram uma refeição deliciosa, com sabores totalmente novos. Aspectos como a simples divisão do Salmo em duas partes [O pastor e suas ovelhas / O anfitrião e seu convidado de honra para o banquete], fez com o que o texto tivesse um novo brilho, me levando a apreciar a beleza dessas duas figuras e ambientes de modo mais cuidadoso e contemplativo.

Cresci em uma região do Brasil onde a criação de ovelhas e cabras não é comum, a primeira vez que vi uma ovelha pessoalmente, foi por volta dos quatorze/quinze anos, em uma das festas de Junho organizada pela igreja. Aqui no Oeste da África, as ovelhas e cabras estão por toda parte, mas a realidade da ovelha africana e de seu pastor é bem diferente do contexto desse Salmo. Portanto, foi bem interessante conversar com nossos tradutores e pensarmos juntos na melhor maneira de expressarmos palavras como “verdejantes”, “Seu nome”, “vale da sombra da morte”, “vara e cajado”, “ungir com óleo”, “cálice que transborda”, na língua do povo.

 

O Contexto histórico do Pastor e do Anfitrião

Muitos dos que estudam a respeito do Antigo Oriente Próximo[1] afirmam que a figura do pastor, é uma metáfora da realeza. Portanto, quando o salmista faz uso dessa metáfora, ele está afirmando que Deus é o seu Rei. É possível fazer essa afirmação, tendo como base outros textos do Antigo Testamento como, Jeremias 23:1-4 e Ezequiel 34:1-10, onde o profeta traz uma severa exortação aos reis e líderes de Israel.

Além das próprias Escrituras, temos texto históricos, como o epílogo do famoso Código de Hamurabi, que faziam uso dessa mesma linguagem. O povo era o rebanho e o rei o pastor que os conduzia a pastos verdejantes: “Procurei para eles lugares pacíficos [...] fiz com que o povo de todas as colônias repousasse em pastos seguros[2]. Outra evidência interessante desse imaginário, é a descrição de Marduk[3] como aquele que provê locais de pastagem e bebida.

Portanto, a figura do pastor sendo usada para se referir a Deus, não era uma novidade para os primeiros do Salmo davídico. Deus sempre fez questão de, além de falar a língua dos homens, usar figuras e ilustrações que faziam parte do imaginário de seus interlocutores. Esse Salmo mostra algo que era sólido na crença do povo de Israel: “O Deus que criou céus e terra, o mar e a porção seca, aquele que conduziu Israel para fora do cativeiro no Egito – esse Senhor grandioso e cósmico também cuida e pastoreia o indivíduo[4].

Na segunda parte do Salmo temos a figura do Anfitrião. Era parte da cultura da época a hospitalidade extravagante, principalmente quando se tratava da realeza. Óleos aromáticos eram usados para perfumar o indivíduo e o ambiente, eram meios de abrandar o calor e a poeira sempre presentes naquela região. As azeitonas e as uvas eram alimentos básicos na alimentação do povo do Antigo Oriente Próximo, por isso que o vinho será sempre um alimento que fará parte da mesa.

 

A jornada da ovelha ao lado do Bom pastor

Essa mesma imagem do Rei-pastor é usada no Novo Testamento, por meio de Jesus, o bom pastor (João 10). O que torna uma mensagem poderosa e relevante, não é somente o conteúdo, mas a forma como vamos transmitir essa mensagem. Os tipos de recursos linguísticos usados ao compartilhar a mensagem, faz toda a diferença. Jesus usou as mesmas metáforas que Deus havia usado durante toda sua jornada com o povo de Israel. Ele disse de forma muito bonita e com todas as letras: Eu sou o Rei-pastor do Salmo 23, eu sou o Rei pastor que lava os seus pés e te convida para jantar. Eu sou o Rei-anfitrião que tem sua cabeça e pés ungidos em preparação para o martírio, porque o bom pastor é aquele que dá a vida pelas suas ovelhas.

Quando visualizamos a geografia e vegetação das regiões montanhosas e áridas que Davi se inspirou para escrever esse texto, é possível compreender que os “pastos verdejantes”, são locais específicos de vegetação, da mesma forma que as “águas tranquilas”. Locais que colocariam as ovelhas em completa vulnerabilidade, ante a um predador, no momento em que estivessem se alimentando. Ou seja, sem o pastor, as ovelhas jamais conseguiriam sobreviver nas regiões montanhosas do Antigo Oriente. É exatamente assim que o salmista se coloca diante do Senhor Deus, vulnerável e completamente dependente do seu pastor.  

A imagem do pastor conduzindo a ovelha tem uma implicação que ultrapassa cuidado e sustento pessoal, ela também fala da própria jornada de salvação de cada um de nós. O pastor nos conduz pelo caminho correto (justiça/retidão), pois é a Sua própria reputação (nome) que está em jogo. Ou seja, se há algum mérito em estarmos andando no caminho que agrada a Deus, esse mérito é todo do bom pastor e de sua maravilhosa graça. Ser o povo que carrega o nome de Deus, como Deus chamou Israel para ser, é ter a segurança de que da mesma forma que Ele prometeu estar com Jacó, com o jovem Jeremias e o povo de Israel durante o período do exílio (Gn 28:15, Jer 1:8, Is 41:10, 43:5), Ele continua presente com todos aqueles que tem perseverado na missão Dele (Mt 28:20, Cl 2:5, At 18:10).

A presença do pastor nos ajuda a não ter medo de nenhum mal, seja a cova dos leões ou o coliseu, não haverá temor, pois Ele está conosco. Seja para que os leões tenham suas bocas fechadas e possamos experimentar um grande livramento, ou para ter nosso corpo queimado em praça pública, “...não temerei...pois estais comigo”.

 

Conclusão – a mesa posta

É possível imaginar a cena de um rei que recebe um de seus soldados (comandantes) para o jantar, pois temos os inimigos (do rei e do salmista) rendidos, diante da mesa. Como bom anfitrião, o rei ordena que a cabeça do seu servo seja ungida (refrescada) com óleo perfumado. O pacto estabelecido entre Deus e seu povo, foi muito semelhante ao sistema de vassalagem que tivemos durante a Idade Média. E a imagem desse Salmo evoca exatamente isso, Deus como o grande Pastor-Rei e o salmista como um vassalo desse Rei[5].

Como qualquer metáfora, podemos ter nessa cena mais de um significado. É possível também imaginar essa mesa preparada, como a mesa do banquete escatológico descrito em Isaías 55 e a mesa das bodas do cordeiro descritas em Mateus 22:1-14 e Apocalipse 19:7-9. A mesa em que celebraremos para sempre a vitória do Cordeiro sobre a morte, a injustiça e toda a destruição que o pecado causou. Será a mesa que celebraremos o reinado do Pastor-Rei, por toda a eternidade!

 



[1] Esse é o termo usado para se referir a região de onde apareceram as civilizações anteriores às clássicas, na região atualmente denominada Oriente Médio, do período que vai desde a Idade do Bronze até à expansão dos Persas no século VI a.C.

[2] E. J. Young, R. K. Harrison e Robert L. Hubbard Jr., The New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, MI; Cambridge, Reino Unido: William B. Eerdmans Publishing Company, 2014), 241.

[3] Um dos principais deuses do panteão babilônico.

[4] Rolf A. Jacobson e Beth Tanner, “Book One of the Psalter: Psalms 1-41” (Salmo 1-41), em The Book of Psalms (O Livro dos Salmos), org. E. J. Young, R. K. Harrison e Robert L. Hubbard Jr., The New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, MI; Cambridge, Reino Unido: William B. Eerdmans Publishing Company, 2014), 240-241.

[5] Rolf A. Jacobson e Beth Tanner, “Book One of the Psalter: Psalms 1–41”, in The Book of Psalms, org. E. J. Young, R. K. Harrison, e Robert L. Hubbard Jr., The New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, MI; Cambridge, U.K.: William B. Eerdmans Publishing Company, 2014), 238.


sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

O Senhor dos Exércitos


Pelo Senhor, marchamos sim
O Seu exército, poderoso é
E Sua glória será vista em toda terra

Vamos cantar o canto da vitória
Glória Deus, vencemos a batalha
Toda arma contra nós perecerá

(Adhemar de Campos)

Ilustração do livro: A Princesa do Jardim do Grande Criador

Esse é um dos nomes de Deus que era muito usado pelos irmãos e irmãs de vertentes pentecostais, na década de 90 (minha infância). Lembro-me das músicas que cantávamos, como “O nosso general é Cristo” de Adhemar de Campos, e do entendimento que alguns líderes tinham a respeito desse “exército de Deus”, como se fosse as forças armadas de algum país. Sempre tinha algum líder que colocava a igreja para marchar e cantar alguma música de conquista e vitória.

Por mais que eu entenda que a igreja do Senhor Jesus aqui na terra, alinhada com Sua vontade e cheia do poder do Espírito Santo, seja capaz de fazer maravilhas e transformar realidades completamente destruídas pelo pecado, não a vejo como um exército armado com armas humanas, que luta por interesses terrenos e pecaminosos. Eu a vejo vestida com a verdade, que é o próprio Cristo e Sua Palavra, pronta para morrer e não para matar.

É fato que Jesus virá nas nuvens acompanhado de uma multidão de santos, mas a batalha que foi travada contra Ele, será ganha por ninguém menos que Ele e a espada afiada que sai de sua boca[1]. Os inimigos do Cordeiro são tão insignificantes em suas forças e armas que cairão, com apenas um sopro da boca de Jesus[2]. É como Davi falou[3] e o Oficina G3 cantou: “Porque do Senhor é a guerra, e o inimigo vem ao chão, na força do braço de Deus, sem espada ou canhão.”[4]

O termo “Senhor dos Exércitos / O Senhor das hostes celestiais” (Sabaoth [Σαβαὼθ /אבצ]) aparece na Bíblia pela primeira vez no livro de I Samuel, o livro da transição entre o tempo dos juízes e o período da monarquia em Israel.

 

Significado

A palavra Sabaoth, que nas traduções para o português ficou como “Exércitos”, possui diferentes significados no hebraico. Ela aparece 282 vezes em toda a Bíblia. O seu primeiro significado é serviço/servo, seja de guerra ou do Tabernáculo (o trabalho dos levitas). É por isso que no texto hebraico, o agrupamento de pessoas tanto para o serviço sacerdotal como para o serviço militar, é usada essa mesma palavra.

O segundo significado do termo são as hostes celestiais, alguns os chamam de corpos celestes. Nas escrituras veremos a palavra Sabaoth tanto para o sol, lua e estrelas, como também se referindo a principados e potestades do mundo invisível. Dentro desse significado de governantes invisíveis, também entram os que governam sobre a terra, reis, monarcas, chefes, e afins.

Portanto, o sentido militar é apenas um dos significados dessa palavra que tornou-se um dos nomes de Deus na Bíblia. Ela carrega o significado de toda a criação. Em I Samuel o Deus de Israel se apresenta, como Yahweh Sabaoth, o Deus que governa todo o Cosmo, nos céus, na terra e em baixo da terra. Aquele que tem controle sobre todas as coisas, e governa sobre todos os seres criados. Ele é o verdadeiro Rei.

 

A palavra no texto

Todos os anos esse homem (Elcana) subia de sua cidade a Siló para adorar e sacrificar ao SENHOR dos Exércitos. [...] E fez (Ana) um voto, dizendo: “Ó Senhor dos Exércitos, se tu deres atenção à humilhação de tua serva, te lembrares de mim e não te esqueceres de tua serva, mas lhe deres um filho, então eu o dedicarei ao SENHOR por todos os dias de sua vida.

(I Samuel 1:3 e 11 NVI)

O autor do livro começa a narração deixando claro que o Deus adorado em Siló, por todos os israelitas que peregrinavam de ano em ano para o dia do Yom kipur (Dia da expiação)[5], era o Deus soberano, que governava todos os seres criados. O escritor também coloca esse nome de Deus na boca de Ana, em sua oração de súplica e quebrantamento.

É importante ressaltar a carga de significado e peso que tem esse capítulo de abertura do livro de Samuel. O propósito de Deus não era uma monarquia ou o estabelecimento de um rei, como os demais povos que viviam ao redor de Israel. Ele tinha dado leis que eram suficientes para manter Israel seguro e próspero contra qualquer ameaça externa. Todavia, cada uma fazia o que lhe parecia melhor, e então se instala o ciclo de queda-arrependimento-redenção acontecendo em todo o livro de Juízes. Isso, até chegarmos no sacerdócio corrompido da casa de Eli e o nascimento da escola de profetas com Samuel.

A adoração a outros deuses, aos “Exércitos celestiais”, era algo que estava incluso no ciclo de constante queda de Israel. O povo de Deus era um povo idólatra, desde o Sinai. E eles não melhoram nesse aspecto quando entraram na terra prometida. O livro de Juízes é uma pequena amostra dessa realidade. Esse coração leviano alinhado com o pedido por um rei, foram bons motivos para que o autor do livro de Samuel começasse sua narrativa apontando para o único e verdadeiro Rei, o Senhor dos Exércitos, o Deus todo Poderoso.

 

Conclusão

A situação do povo de Deus hoje não é muito diferente do que vemos na narrativa bíblica de Juízes e Samuel. Talvez você possa pensar que é exagero, mas o nosso coração continua mal e corrupto, da mesma maneira que antes.  Somos especialistas em fabricar ídolos e destruir toda a boa criação de Deus em prol dos nossos interesses egoístas e pecaminosos. A diferença é que temos a revelação completa do Verbo de Deus, temos o Deus trino habitando em nossos corações e nos ajudando a amar e cumprir a lei do Senhor. Recebemos uma medida muita grande da revelação de Deus, e como igreja no Ocidente, temos liberdade para acessar todo tipo de conteúdo e versões da revelação de Deus. Somos indesculpáveis!

Que o nosso coração não seja obstinado demais e rebelde a ponto de sermos rejeitados, como Saul foi. Que a graça do arrependimento esteja sempre sobre nós, para que tenhamos olhos para ver quão pecadores somos e quão grave é nosso pecado. Que o Espírito Santo continue nos ensinando que o caminho de Jesus será sempre de humildade e quebrantamento. Que os monumentos que estamos construindo no decorrer da nossa existência, seja sempre para a glória do verdadeiro rei, Yahweh Sabaoth, o Senhor dos Exércitos!

 



[1] Apocalipse 19:15

[2] Isaías 11:4 e II Tessalonicenses 2:8

[3] A música escrita por Walter Lopes baseada na fala de Davi, em I Samuel 17:45-47.

[4] Música: Davi (1996 – Indiferença)

[5] Levítico 16.

sábado, 28 de setembro de 2024

A Trindade


“Na doutrina da Trindade” escreveu Bavinck,
“bate o coração de toda a revelação de Deus
para a redenção da humanidade”.
(Michael Horton)



Pericorese é um termo que os teólogos, dos primeiros séculos da era cristã, utilizavam para se referir ao relacionamento eterno da Trindade. É uma palavra grega que significa interpenetração ou habitação mútua, alguns poetas a chamavam de dança divina, pelo fato do significado carregar uma espécie de movimento. A habitação mútua exaustiva das pessoas da Trindade, o mistério do Pai estar no Filho que é eternamente simultâneo à habitação do Filho no Pai, e a habitação mútua desses no Espírito (Leithart, 2018).

Esse mistério da Trindade é, como Bavinck afirmou, o coração de toda a revelação de Deus. E como sabemos, o conhecimento de Deus é vital para a vida de qualquer cristão. Jesus disse isso de forma bem clara, a vida Eterna é conhecer o Deus trino, o único e verdadeiro Deus[1]. A vida cristã é perseverar em conhecer a Deus, pois quanto mais o conheço, mais conhecemos a nós mesmo e os outros. Consegue perceber aqui, o mesmo movimento da Pericorese?

A questão é, como a doutrina da Trindade pode transformar-se em realidade pericorética no meu cotidiano? Como perceber a importância dessa doutrina, sendo que a maior parte dos sermões que são pregados em nossas igrejas não falam sobre o assunto? Creio que um bom começo seria o caminho trilhado por Peter J. Leithart, em seu livro “Vestígios da Trindade”[2].

 

A Trindade em nosso ordinário

Leithart nos leva a observar os detalhes mais corriqueiros e ordinários da vida humana, afim de nos despertar para a realidade trinitária contida em cada um deles. A mãe e seu filho no ventre; a relação entre você, seus amigos, inimigos, família, pessoas que estão em seus pensamentos, sonhos e até mesmo planos; passado, presente e futuro; palavras, conceitos e linguagem, são alguns dos muitos exemplos de coabitação mútua que fazem parte do nosso cotidiano.

Sou diferente das coisas ao meu redor, mas também estou inseparavelmente interligado a elas. O mundo não é só fora; é também dentro. Não estou apenas fora do resto do mundo; estou nele. Minha conexão com o mundo é um nó celta. Dentro e fora formam uma fita de Möbius que dobra-se em si mesma. [...] Habitamos o mundo. Porque temos corpos e somos corpos, ocupamos espaço no mundo. Trombamos nas coisas, repousamos os cotovelos na mesa, digitamos no teclado com nossos dedos. O mundo nos bate de volta, nos toca de volta, e nossa vida toma forma da dança por vezes canhestra entre eu e meu ambiente. (Leithart, p.16-17)

 Parecem detalhes óbvios, mas são vestígios do Deus Criador em toda a sua criação. Deus fez questão de deixar sua assinatura impressa em cada detalhe de nosso ser e do mundo que nos rodeia. É possível pensar em algumas razões as quais levaram o Eterno, nos criar de maneira tão bela e tão conectada à Ele. A primeira delas é para que não tenhamos desculpas diante Dele, no grande de terrível Dia do Senhor. Como também para deixar claro uma das necessidades mais básicas do “ser humano”, interdependência. Nascidos para habitar mutuamente e depender uns dos outros, desde a mais tenra idade. Fomos criados à imagem e semelhança do Deus trino, isso significa ser comunidade. Um ser pericorético, criou seres pericoréticos.

 

A Trindade em nossas Igrejas

O reverendo Ricardo Barbosa em seu livro, O Caminho do coração[3], aponta questões interessantes a respeito do relacionamento da Igreja com a Trindade. Em seu primoroso trabalho, Barbosa traz uma observação a respeito das diversas tradições evangélicas do Brasil e suas ênfases em alguma das pessoas da Trindade. Ele fala sobre uma espécie de fragmentação da Trindade [como se isso fosse possível], de acordo com cada tradição. Ele cita como exemplo as tradições reformadas que dão ênfase em Deus Pai, a tradição pentecostal e carismática com ênfase do Espírito Santo e as tradições orientais com ênfase no Filho, em sua encarnação e obra.

Barbosa nos alerta para o perigo dessa fragmentação tola, posto que, é impossível separarmos os três. Chega a ser heresia, afirmar tal coisa. A experiência com o Deus da Bíblia é sempre conjunta e nunca fragmentada. A experiência que eu acho estar tendo com o Espírito Santo, está sendo na verdade com o Deus trino, o Pai, Filho e Espírito ao mesmo tempo.

O Pai, o Filho, e o Espírito Santo são, cada um, uma personalidade, e juntos constituem o Deus exaustivamente pessoal. Existe uma eterna interação autoconsciente entre as três pessoas da Divindade. Elas são consubstanciais. Cada uma das três pessoas é Deus tanto quanto as outras duas. O Filho e o Espírito não derivam seu ser do Pai. A diversidade e a unidade no ser de Deus são, portanto, igualmente últimas; elas são exaustivamente correlatas uma à outra, mas não a qualquer outra coisa.  

(Van Til[4])

É válido ressaltar que o alerta feito por Ricardo Barbosa, é simplesmente para nos levar a reconhecer que o Deus da bíblia transcende todas as tradições cristãs, Ele é um e sempre estará unido à si mesmo. Como também para nos lembrar que nossa espiritualidade pode ser muito mais profunda e rica quando conhecemos mais esse Deus trino.


Conhecer a Trindade é conhecer Deus, o Deus eterno e pessoal de beleza, interesse e fascínio infinitos. A Trindade é o Deus que se pode conhecer e, para sempre, crescer em conhecimento mais profundo. [...] Não confundidos, mas indivisíveis. Eles são quem são juntos. Eles estão sempre juntos e, portanto, sempre trabalham juntos.


(Michael Reeves[5])

A doutrina da Trindade ensina a Igreja do Senhor Jesus a experimentar os efeitos de uma das últimas orações feitas por Jesus, antes da cruz: Minha oração é que todos eles sejam um, como nós somos um, como tu estás em mim, Pai, e eu estou em ti. [...] Que eles experimentem unidade perfeita, para que todo o mundo saiba que tu me enviaste e que os amas tanto quanto me amas[6]. Unidade, mesmo em meio às nossas diferenças de tradição. Podemos ser um, sem deixarmos de ser quem somos. Unidade e diversidade, duas características do Deus trino.

 

Conclusão

O DNA do Criador pulsa em cada centímetro da criação. Mesmo nos rebelando contra nossa identidade e destino, Deus fez um caminho no meio do deserto para resgatar a humanidade caída, para redimir cada bioma, espécies em extinção, para o louvor de Sua Glória! Ele não abriu mão de Sua criação, pois fomos predestinados a sermos participantes de Sua Glória, a dança eterna do Três.

Eu fui criança e brinquei de “Ciranda-cirandinha”, hoje sou mulher e tenho a certeza de que não há lugar melhor para estar do que nessa divina cantiga de roda, a Pericorese. Estar consciente de que estaremos eternamente em habitação mútua com os Três, é o tesouro mais precioso, é a pérola de grande valor!

 

 



[1] João 17:3.

[2] Editora Monergismo, 2017.

[3] Editora Ultimato, 2023.

[4] Apologética Cristã, editora: Cultura Cristã, 2019.

[5] Deleitando-se na Trindade, Monergismo, 2017.

[6] João 17:21 e 23.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

A jornada do Herói nas produções culturais

 

Eu tenho um super-herói
Que é muito melhor que He-man
Eu tenho um super-herói
Que é muito melhor que Super-homem.

(Alda Célia)




Há alguns meses atrás estava lendo Os irmãos Karamazov de Dostoievski, um clássico russo que tornou-se literatura mundial. E me recordo de o tempo todo, durante a leitura, esperar o herói da história, Aliocha, pisar na bola e mostrar alguma falha em seu caráter. Quando me dei conta do que eu estava fazendo, foi que a ficha caiu do quanto eu estava acostumada com o perfil de heróis que a era pós-moderna trouxe para dentro dos filmes e livros nas últimas décadas.

O clássico virou romântico, que virou realista e que inspirou os precursores modernistas[1]. O modernismo trouxe o anti-herói, no Brasil, conhecido como Macunaíma[2]. O anti-herói é o herói com defeitos, o herói com falhas de caráter e valores, em sua maioria contrários aos que eram enaltecidos pelas gerações anteriores. Quando estudamos as raízes filosóficas dessas escolas e da produção cultural dos últimos dois séculos, vamos entender que “o buraco é bem mais fundo” do que imaginamos.

Nunca antes tivemos tanto conforto, oportunidades para desenvolver nossas habilidades e dons. Nunca antes tivemos o mundo literalmente na palma de nossas mãos, podemos estar conectados à pessoas dos diversos cantos da terra em uma fração de segundos. A distância tornou-se obsoleta. Mas, ao mesmo tempo, nunca presenciamos tanto isolamento, individualismo, doenças relacionadas à mente e emoções. A produção cultural de uma sociedade é só mais um meio pelo qual ela revela seu coração e seus valores.

 

O anti-herói

Talvez o anti-herói mais famoso da modernidade (e continua na pós-modernidade), tanto nos quadrinhos como nos cinemas é o Deadpool. Isso quando falamos de uma das maiores produtoras de heróis de todos os tempos, a Marvel Comic’s. Não sou especialista nessa franquia, pois não assisti a todos os filmes produzidos pela mesma, e muito menos li os quadrinhos, todavia, é impossível ignorar a cultura pop.

Não vejo problema em termos anti-heróis em nossas narrativas e ficções, pois eles mostram muito bem a realidade da humanidade caída, morta em seus delitos e pecados. Contudo, quando o herói perde seu brilho, e passamos admirar e torcer mais por esses “heróis” caídos, é onde realmente mora o problema. É a mesma história de nos pegarmos, ao assistirmos uma novela/série, torcendo para que o casal se divorcie porque os amantes são mais bonitos ou possuem “qualidades” superiores aos cônjuges. O anti-herói é isso mesmo que você está pensando, é uma mistura do vilão com o mocinho da história.

A Bíblia é um exemplo interessante de muitos anti-heróis. Homens e mulheres caídos que suas histórias apontam para a narrativa principal, a necessidade de um Messias, o verdadeiro herói. O papel do anti-herói é apontar para o verdadeiro herói da história, o Deus-homem. O papel do anti-herói é comprovar que a humanidade não pode salvar-se a si mesmo, ela depende da intervenção divina. Pode parecer tema da Escola Bíblica de Férias, mas essa é a mensagem do evangelho, não existe salvação fora de Cristo. Quando nos distanciamos desse modelo de perfeição vamos nos deparar com o que temos encontrado hoje nas narrativas e ficções, heróis à imagem e semelhança da humanidade caída.

 

A pós-modernidade e o enaltecimento do “salve-se a si mesmo”.

Uma cena importante nas Escrituras, durante a crucificação de Jesus, é o momento em que os religiosos passam diante da cruz zombando de Jesus e usam exatamente essa expressão: “Salve-se a si mesmo!”. O único ser humano capaz de salvar a si mesmo, decidiu não salvar a si mesmo, em obediência ao Pai. E hoje quando perguntamos às nossas crianças e adolescentes, quem são seus heróis, a resposta vai ser essa: “Eu sou o meu herói!”[3]. O ceticismo plantado há duas gerações anteriores, cultivado pelo enaltecimento do indivíduo, gerou a geração dos heróis de si mesmo.

É possível ver essa verdade em algumas releituras dos contos de fada nos cinemas, como também as novas histórias sem o famoso “felizes para sempre”. Ficções como As crônicas de gelo e fogo[4] vieram para confirmar as conclusões dos pós-guerras, utopias humanas podem virar distopias. Isso não deixa de ser verdade, entretanto, a intervenção divina é real! Deus entrou na história do cosmo e está restaurando todas as coisas para o louvor de sua glória! Ele continua sendo Senhor de todas as coisas, e sim, o nosso “Felizes para sempre” está por vir.

Ser cristão é ter a certeza de que SE nossos dias melhores [que estão por vir], não chegarem nessa vida, eles estarão chegando com o Messias! Jesus está voltando para governar as nações e restaurar a terra! Quer maior esperança escatológica do que esta?

 

Conclusão

A maior parte de nós quando consumimos cultura pop não ligamos muito para o que aquele artefato cultural (música, filmes, peças de teatro, livros, obras de arte...) está falando, muito menos paramos para pensar sob qual linha filosófica foram produzidos. Afinal de contas, pra que serve filosofia mesmo? A maior parte de nós, quando nos conectamos a algum streaming (Netflix, Amazon, Disney, HBO...) em nossos celulares, laptops ou mesmo televisão, é com o intuito de nos desligarmos da realidade. Procuramos uma ficção que não nos proporcionem reflexões profundas, porque estamos cansados de pensar.

Mas, a parte irônica nisso tudo é que estamos consumindo projetos muito bem pensados, até mesmo aquelas produções que parecem completamente ridículas e sem sentido, elas estão comunicando e moldando formas de pensar. E a tal da filosofia é a forma como esses pensamentos e ideias são sistematizados e explicados. Não existe produção cultural neutra. Os heróis da geração pós-guerra morreram de overdose, os heróis da minha geração querem mudar o mundo. Os heróis da geração atual é o self (si). O papel do herói nas narrativas culturais são muito importantes, pois, como você pode perceber, podem (de)formar a mentalidade de uma geração.

 

 



[1] Aqui resumo de forma cadencial as escolas literárias e artísticas que tiveram início a partir do Iluminismo (Renascimento) – Século XV.

[2] Anti-herói da obra de Mario de Andrade, que em minha opinião é uma produção genial. Todo missionário(a) ou pastor(a) brasileiro(a) deveria ler Macunaíma.

[3] Capital Moral – Roel Kuiper.

[4] Popularmente conhecida por sua saga na HBO “A guerra dos Tronos – Games of thrones” e atualmente a série “Casa do dragão”.