“Na doutrina da Trindade” escreveu Bavinck,“bate o coração de toda a revelação de Deuspara a redenção da humanidade”.(Michael Horton)
Pericorese é um termo
que os teólogos, dos primeiros séculos da era cristã, utilizavam para se
referir ao relacionamento eterno da Trindade. É uma palavra grega que significa
interpenetração ou habitação mútua, alguns poetas a
chamavam de dança divina, pelo fato do significado carregar uma espécie de
movimento. A
habitação mútua exaustiva das pessoas da Trindade, o mistério do Pai estar no
Filho que é eternamente simultâneo à habitação do Filho no Pai, e a habitação
mútua desses no Espírito (Leithart, 2018).
Esse
mistério da Trindade é, como Bavinck afirmou, o coração de toda a revelação de
Deus. E como sabemos, o conhecimento de Deus é vital para a vida de qualquer
cristão. Jesus disse isso de forma bem clara, a vida Eterna é conhecer o Deus
trino, o único e verdadeiro Deus[1]. A
vida cristã é perseverar em conhecer a Deus, pois quanto mais o conheço, mais
conhecemos a nós mesmo e os outros. Consegue perceber aqui, o mesmo movimento
da Pericorese?
A questão é, como a doutrina da Trindade pode transformar-se em realidade pericorética no meu cotidiano? Como perceber a importância dessa doutrina, sendo que a maior parte dos sermões que são pregados em nossas igrejas não falam sobre o assunto? Creio que um bom começo seria o caminho trilhado por Peter J. Leithart, em seu livro “Vestígios da Trindade”[2].
A
Trindade em nosso ordinário
Leithart nos leva a
observar os detalhes mais corriqueiros e ordinários da vida humana, afim de nos
despertar para a realidade trinitária contida em cada um deles. A mãe e seu
filho no ventre; a relação entre você, seus amigos, inimigos, família, pessoas
que estão em seus pensamentos, sonhos e até mesmo planos; passado, presente e
futuro; palavras, conceitos e linguagem, são alguns dos muitos exemplos de
coabitação mútua que fazem parte do nosso cotidiano.
Sou
diferente das coisas ao meu redor, mas também estou inseparavelmente
interligado a elas. O mundo não é só fora; é também dentro. Não estou apenas
fora do resto do mundo; estou nele. Minha conexão com o mundo é um nó celta.
Dentro e fora formam uma fita de Möbius que dobra-se em si mesma. [...]
Habitamos o mundo. Porque temos corpos e somos corpos, ocupamos espaço no
mundo. Trombamos nas coisas, repousamos os cotovelos na mesa, digitamos no
teclado com nossos dedos. O mundo nos bate de volta, nos toca de volta, e nossa
vida toma forma da dança por vezes canhestra entre eu e meu ambiente.
(Leithart, p.16-17)
Parecem detalhes óbvios, mas são vestígios do
Deus Criador em toda a sua criação. Deus fez questão de deixar sua assinatura
impressa em cada detalhe de nosso ser e do mundo que nos rodeia. É possível
pensar em algumas razões as quais levaram o Eterno, nos criar de maneira tão bela
e tão conectada à Ele. A primeira delas é para que não tenhamos desculpas
diante Dele, no grande de terrível Dia do Senhor. Como também para deixar claro
uma das necessidades mais básicas do “ser humano”, interdependência. Nascidos
para habitar mutuamente e depender uns dos outros, desde a mais tenra idade.
Fomos criados à imagem e semelhança do Deus trino, isso significa ser
comunidade. Um ser pericorético, criou seres pericoréticos.
A
Trindade em nossas Igrejas
O reverendo Ricardo
Barbosa em seu livro, O Caminho do coração[3],
aponta questões interessantes a respeito do relacionamento da Igreja com a
Trindade. Em seu primoroso trabalho, Barbosa traz uma observação a respeito das
diversas tradições evangélicas do Brasil e suas ênfases em alguma das pessoas
da Trindade. Ele fala sobre uma espécie de fragmentação da Trindade [como se
isso fosse possível], de acordo com cada tradição. Ele cita como exemplo as
tradições reformadas que dão ênfase em Deus Pai, a tradição pentecostal e
carismática com ênfase do Espírito Santo e as tradições orientais com ênfase no
Filho, em sua encarnação e obra.
Barbosa nos alerta para
o perigo dessa fragmentação tola, posto que, é impossível separarmos os três. Chega
a ser heresia, afirmar tal coisa. A experiência com o Deus da Bíblia é sempre
conjunta e nunca fragmentada. A experiência que eu acho estar tendo com o
Espírito Santo, está sendo na verdade com o Deus trino, o Pai, Filho e Espírito
ao mesmo tempo.
O
Pai, o Filho, e o Espírito Santo são, cada um, uma personalidade, e juntos
constituem o Deus exaustivamente pessoal. Existe uma eterna interação
autoconsciente entre as três pessoas da Divindade. Elas são consubstanciais.
Cada uma das três pessoas é Deus tanto quanto as outras duas. O Filho e o
Espírito não derivam seu ser do Pai. A diversidade e a unidade no ser de Deus
são, portanto, igualmente últimas; elas são exaustivamente correlatas uma à
outra, mas não a qualquer outra coisa.
(Van Til[4])
É válido ressaltar que o alerta feito por Ricardo Barbosa, é simplesmente para nos levar a reconhecer que o Deus da bíblia transcende todas as tradições cristãs, Ele é um e sempre estará unido à si mesmo. Como também para nos lembrar que nossa espiritualidade pode ser muito mais profunda e rica quando conhecemos mais esse Deus trino.
Conhecer a Trindade é conhecer
Deus, o Deus eterno e pessoal de beleza, interesse e fascínio infinitos. A
Trindade é o Deus que se pode conhecer e, para sempre, crescer em conhecimento
mais profundo. [...] Não confundidos, mas indivisíveis. Eles são quem são
juntos. Eles estão sempre juntos e, portanto, sempre trabalham juntos.
(Michael Reeves[5])
A doutrina da Trindade
ensina a Igreja do Senhor Jesus a experimentar os efeitos de uma das últimas
orações feitas por Jesus, antes da cruz: Minha
oração é que todos eles sejam um, como nós somos um, como tu estás em mim, Pai,
e eu estou em ti. [...] Que eles
experimentem unidade perfeita, para que todo o mundo saiba que tu me enviaste e
que os amas tanto quanto me amas[6].
Unidade, mesmo em meio às nossas diferenças de tradição. Podemos ser um, sem
deixarmos de ser quem somos. Unidade e diversidade, duas características do
Deus trino.
Conclusão
O DNA do Criador pulsa
em cada centímetro da criação. Mesmo nos rebelando contra nossa identidade e
destino, Deus fez um caminho no meio do deserto para resgatar a humanidade
caída, para redimir cada bioma, espécies em extinção, para o louvor de Sua
Glória! Ele não abriu mão de Sua criação, pois fomos predestinados a sermos
participantes de Sua Glória, a dança eterna do Três.
Eu fui criança e
brinquei de “Ciranda-cirandinha”, hoje sou mulher e tenho a certeza de que não
há lugar melhor para estar do que nessa divina cantiga de roda, a Pericorese. Estar
consciente de que estaremos eternamente em habitação mútua com os Três, é o
tesouro mais precioso, é a pérola de grande valor!