segunda-feira, 8 de março de 2021

MULHER – Controvérsias, realidade e pragmatismo

Eu canto a canção das santas de Deus:

Pacientes, constantes em fé e coragem.

Viveram, lutaram, reinaram e serviram,

Jesus foi para elas o Mestre e Senhor.

E uma foi sábia, a outra rainha;

e algumas, seus nomes, a História ocultou.

[...]

E amando a Jesus do jeito que amaram,

O amor transbordante as tornou resistentes. [...]

À guerra uma foi, a outra ao martírio;

Hereges, queimadas, sem honra ou valor.

E eu, sem desculpas, não, não poderia

negar-me a ser uma delas, Senhor!

 

(Paráfrase de Simei Monteiro do hino 712)[1]



 

                    São séculos de controvérsias a respeito do que podemos ou não fazer. Eis ai algumas perguntas advindas dessas controvérsias: Nossas vozes poderiam ou não ser ouvida em público? Cumpriríamos o propósito de Deus, para nossas vidas, sozinhas (solteiras)? Deus teria um propósito para mulheres? Poderíamos pregar, aprender e ensinar teologia? Qual seria o propósito de Deus para as mulheres? Teria mudado com o passar das gerações? Qual seria (e tem sido) o papel da mulher na edificação do corpo de Cristo? Qual tem sido sua contribuição no decorrer da história da Igreja?

Muitos teólogos contemporâneos, diga-se de passagem, afirmam que uma mulher não pode ser ordenada a pastora, ou mesmo pregar nos cultos da igreja local. Alguns mais extremistas consideram qualquer trabalho feminino nas igrejas proibido ou com necessidade de ser refeito[1]. Outros, um pouco mais flexíveis, delegam a elas o discipulado das mulheres e o ministério infantil. Um dos reformadores, famoso na Alemanha, fazia afirmações duras a respeito das mulheres. Outro homem de Deus, Agostinho, famoso pai da igreja, chegou a afirmar que uma mulher sem marido é incompleta.

Raciocínio estes que se assemelhavam ao pensamento do judaísmo pós segundo templo, a mulher era vista sempre como impura e incapaz, ela era vista como um receptáculo para a procriação (o uso do marido). Elas não podiam ir à escola e muito menos aprender a Torá; há relatos de um rabino que afirmava que: uma mulher sem pai ou sem marido é uma mulher sem cabeça.

Essas e outras controvérsias surgiram no decorrer da história e tradição cristã. É claro que, desde a era moderna até os dias atuais temos vivido o outro lado do extremo. Temos visto o movimento feminista como resposta e solução para o machismo que temos dentro das igrejas, em decorrência das distorções do que “Deus falou” através das escrituras. 

 

Realidade na História da Igreja

Temos exemplos tão claros, da atuação de mulheres, independente de seu estado civil, nas narrativas neotestamentarias que contribuíram tanto para o ministério de Jesus como para o avanço do evangelho da Igreja do primeiro século. As Marias foram fundamentais no financiamento e alcance do ministério de Jesus, há relatos que afirmam que Maria de Magdala (Madalena) era uma das discípulas que seguia os passos do mestre, como os doze. As filhas de Tiago profetizavam e edificavam a Igreja. Priscila foi uma fervorosa anfitriã e colaboradora no ministério de Paulo. Dorcas evangelizava através de obras sociais e do cuidado às viúvas e órfãos.

Durante o século XIII tivemos um movimento de espiritualidade, chamado misticismo, onde muitas mulheres, freiras ou criadas em ambientes monásticos, foram fiéis representantes do amor e devoção ao Senhor Jesus em uma era de escuridão e devassidão moral. Alguns nomes citados, que representam esse movimento, na obra de Rute Salviano são: Margarida Ebner, Matilde de Magdeburgo, Hildegarda de Bingen. Essas e outras mulheres usaram a escrita tanto para enaltecer a Deus, como para denunciar as corrupções do clero. Durante esse período monástico, também temos o movimento das beguinas, mulheres que conciliavam devoção com obra social. Segundo Rute Salviano[2] essas mulheres eram as pastoras do rebanho que não tinha pastor. Veja o que ela escreve a respeito dessas servas de Deus:

Apesar de suas boas obras de caridade, as beguinas foram perseguidas como heréticas, pois não se encaixavam em nenhum dos dois espaços que eram permitidos às mulheres: não estavam em seus lares, subordinadas aos seus maridos, nem pertenciam a uma ordem religiosa, subordinadas à Igreja. E o que mais agravou sua situação foi a ousadia de falar, ensinando ao povo em sua própria língua[3], como também escrevendo obras religiosas. A bonita história das beguinas, grupo de mulheres que conseguiu unir ação e contemplação como se fossem Marta e Maria em uma só pessoa.

Margarida de Navarra, uma nobre que contextualizou princípios cristãos afim de, evangelizar a corte francesa nos séculos XIV e XV, corrompida pela imoralidade sexual. Susana Wesley, a mãe do movimento metodista, um dos avivamentos que revolucionou a Inglaterra durante o século XVIII descobriu a importância da oração, e o poder de ensinar seus filhos a terem um relacionamento profundo com o Senhor através das escrituras. Phobe Worral Palmer, mãe do movimento de santidade, promoveu missões urbanas em várias favelas de Nova York. Essas e outras tantas, conhecidas (mesmo que em pouco material registrado) ou anônimas foram peças fundamentais nos movimentos avivalistas que vieram desde a reforma protestante. País de Gales, Estados Unidos (Movimento de santidade, Azuza[4], Exército da salvação...), Europa (Metodismo, Morávios...) e principalmente nos movimentos que desembocaram em missões transculturais. As mulheres estavam entre os muitos, missionários enviados.

Sobre as missionárias em campos transculturais e obras pioneiras, gostaria de citar algumas do passado e outras que impactaram diretamente em meu treinamento, ambas são inspiração e força em minha jornada. Tendo em vista que a maior parte da força missionária em campos transcultural, principalmente regiões fechadas para o evangelho (famosa janela 10x40), é de mulheres solteiras. Testemunhei viúvas / separadas / mães solteiras com seus cinquenta e até setenta anos de idade em regiões dos não alcançados.

Hellen Rosenveare, missionária inglesa, dedicou 30 anos de sua vida no centro da África, na, hoje República democrática do Congo[5]. Ela serviu através da medicina, curando corpos e almas naquele lugar; treinando enfermeiros e paramédicos, construindo hospitais e maternidades. Sophie Muller é uma das missionárias mais conhecidas, entre os povos indígenas da América Latina. Ela evangelizou sozinha, praticamente duas tribos na região da Amazônia entre Colômbia e Brasil, os Baniua e Kuripako, durante 30 anos. Ela evangelizava durante o dia e traduzia o novo testamento Kuripako, à luz de lamparina durante a noite em suas viagens de canoa. Hoje cristãos dessas tribos são missionários enviados a outras tribos.

Margarida que deixou sua pátria para dedicar sua vida em terras brasileiras, terras indígenas, com o objetivo de traduzir o Cristo aos não alcançados. Uma parceira de Margarida, no final de sua carreira, foi Isabel Murph[6], antropóloga cristã que serviu diversos povos indígenas e treinou muitos missionários para o campo. Ouvi falar de Carolina chegando na região norte do Brasil para servir uma das famílias de línguas dos povos ianomâmis, os Nimam; treinando Jaqueline[7] que pela graça de Deus está terminando mais um novo testamento para um povo que não tinham as escrituras em sua língua materna. Marli, uma das mulheres mais incríveis que tive a oportunidade de conhecer, tem dedicado os melhores anos de sua vida ensinando as crianças guineenses a lerem as escrituras em sua própria língua. Nenhuma delas se casou, mas geram muitos filhos espirituais e de coração.

 

O que Jesus pensa a respeito das mulheres?

Todas as vezes que me deparo com as controvérsias advindas das variadas tradições teológicas, e passo pela realidade, em parte (bem pequena) relatada a cima me pergunto: Será que todas essas mulheres ouviram a Deus errado? Acharam ter ouvido a voz de Deus e ouviram a si mesmas? Será que elas não viveram o propósito de Deus para suas vidas? Logo em seguida me recordo de Maria de Betânia sentada aos pés de Jesus, ouvindo seus ensinamentos, como os discípulos. E ao ser repreendida Jesus responde: Ela escolheu a melhor parte, e essa não lhe será tirada. Lembro também dessa mesma mulher derramando o perfume precioso aos pés do Mestre, e mais uma vez ao ser repreendida, Jesus diz: Ela fez uma boa ação para comigo. A atitude dela deve ser lembrada em todos os lugares que esse evangelho for anunciado.

Todas as vezes que as controvérsias do: mulher pode ou não fazer isso? Eu me recordo do episódio de João 4, Jesus quebrando todos os protocolos da religião judaica. Talvez não tenhamos dimensão dessa cena, porque desconhecemos o contexto, ou o conhecemos de modo superficial. A mulher na religião judaica do segundo templo já era vista como impura, imagine uma Samaritana. A visão que um judeu tinha de um samaritano era de um porco, ou uma mulher com fluxo de sangue. Ou seja, o ápice da contaminação e impureza. Jesus quebrou todos os protocolos para alcançar o rebanho que não tinha pastor.

As mulheres que entendem o evangelho e amam a Jesus não conseguem agir diferente. Elas desejam alcançar os rebanhos que não tem pastor, os rejeitados e excluídos. Elas estão dispostas a fazer o trabalho que ninguém quer fazer, seja nas igrejas locais ou em campos transculturais. Seja auxiliando seus esposos ou optando pelo celibato. É também o que vamos observar nas histórias das diversas mulheres que compõem a tradição cristã, por mais rígida e tradicional que estas sejam.

Perseverança e confiança

Diante de todas essas coisas, independente de títulos e reconhecimentos, perseveremos naquilo que estamos fazendo, usando nossos dons e talentos para a glória de Deus. Seja aqui ou em qualquer outro lugar que o Espírito nos levar, sirvamos e amemos a Jesus com todo nosso coração, força e mente. Em João 3:8 diz: O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.

Sejamos guiadas pelo Espírito, para sermos usadas da maneira que Ele quiser nos usar, entendendo sempre que não somos as personagens principais nessa história, mas Ele é! Façamos o que Cristo nos vocacionou e chamou para fazer, usando sempre aquilo que Ele tem colocado em nossas mãos. Por que nossa dignidade, respeito e salvação vem Dele, o Cristo que nos redimiu na cruz. Nossos direitos, garantias e honras foram resgatados Nele.



[1] Parece bizarro, mas vi um conjunto de igrejas assim, em que desconsideravam batizados os membros que haviam sido batizados por mulheres. O líder dessa denominação chegou a afirmam que o país, no qual estavam, era amaldiçoado por ter sido evangelizado (de modo pioneiro) por uma mulher, e a bíblia na língua do povo havia sido traduzida também, por outra mulher.

[2] Uma voz feminina calada pela inquisição, p. 122. Editora Hagnos.

[3] É válido ressaltar que nessa época a Igreja só utilizava o latim, tanto para as missas quanto para ler as escrituras. Todo o ensino, considerado sagrado, era feito no latim.

[4] O avivamento da Rua Azuza trouxe algo revolucionário para aquela época, igrejas inter-raciais, de negros e brancos. Época pós abolição da escravatura, onde a segregação era mais visível e cruel que hoje.

[5] Hellen foi presa e torturada, pois o país estava em guerra civil e forte perseguição aos cristãos. Ao sair do cativeiro e se recuperar na Inglaterra, ela volta ao Congo.  Durante o período de tortura e violência, até mesmo sexual, ela desanimada sentindo que Deus a havia abandonado, ela O ouve dizer: Hellen esses não são os seus sofrimentos, são os meus.

[6] Isabel e Margarida foram minhas professoras de Antropologia Cultural no CLM (Curso de Linguística e Missiologia) 2018. Margarida faleceu em 18 de setembro de 2020, em terras brasileiras, onde sempre esteve seu coração.

[7] Jaqueline foi minha professora de tradução e sociolinguística no CLM 2018.





[1] Retirado do livro: Vozes femininas nos avivamentos (Rute Salviano) 





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