sábado, 20 de novembro de 2021

Terceirizando nossa espiritualidade


Mais perto do monte
Mais perto da face
Me espanto com o peso da Tua glória
Mais perto da glória
É mais perto da morte
O medo quer me parar
Então me tira o medo
Que me faz dizer
Moisés, suba em meu lugar

Me faz entender [...]

(É tudo sobre você – Morada)

 

A palavra terceirização é muito usada no contexto empresarial e estatal, todavia é possível trazê-la para o contexto teológico da nossa relação com o Senhor. Terceirizar é contratar um terceiro para realizar um serviço que não é a atividade principal de uma empresa. No caso de responsabilidades que temos em nosso dia a dia para com nossa família, amigos e parentes, podemos dizer que fazemos isso também, em menor escala, transferimos certas responsabilidades para outras pessoas. Por exemplo, a limpeza de nossa casa, as atividades da cozinha e até mesmo o cuidado com nossos filhos. São relações que normalmente transferimos para outras pessoas. Estamos tão acostumados a fazer isso, que muitas vezes fazemos o mesmo com Deus.

Outro motivo que influenciou fortemente colocarmos mediadores em nossa relação com Deus foi devido a um processo que se intensificou em um período da Igreja que chamamos de clericalismo. A existência de um clero constituído, como detentores do saber bíblico, considerados responsáveis pelo culto ao Senhor e pelo perdão de pecados dos leigos. Quando olhamos esse período da história nos deparamos simplesmente com uma repetição cíclica do que havia acontecido no passado, no período da aliança mosaica. Ao lermos as escrituras percebemos, de forma clara, a vontade perfeita de Deus para com seu povo, e ao mesmo tempo os equívocos cometidos por nós humanos caídos.

 

Um reino de sacerdotes

Desde o início da narrativa bíblica percebemos a vontade de Deus de ter filhos à sua imagem e semelhança, um reino de sacerdotes; seres que seriam plenos em adoração e governo. Essa vontade revelada em Gênesis é novamente mostrada ao povo de Israel, justamente no momento em que Deus apresenta aos descendentes de Abraão sua aliança, no Sinai:

Agora, pois, se ouvirem atentamente a minha voz e guardarem a minha aliança, vocês serão a minha propriedade peculiar dentre todos os povos. Porque toda a terra é minha, e vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.” São estas as palavras que você falará aos filhos de Israel.

(Êxodo 19:5,6)

Moisés é levantado por Deus para tirar o povo de Israel do Egito. Deus mostra seu grande poder e provisão durante todo esse processo, não é em vão que as traduções mais antigas utilizam o termo: “Com mão forte / braço forte... te tirei do Egito”. Toda a trajetória relatada nos 18 primeiros capítulos de Êxodo – a passagem pelo Mar Vermelho, as águas de Mara, o pão que cai do céu e alimenta todo o povo, as codornizes, a água da rocha que sacia a sede de Israel, a vitória sobre Amaleque – mostra como Deus desejava uma nação santa (separada das outras), um povo para si, que o representasse em imagem e governo.

Essa expressão “Um reino de sacerdotes” é repetida pelo apóstolo Pedro em sua carta, se referindo à Igreja, como também na conclusão da narrativa bíblica, em Apocalipse; João vê o reino de sacerdotes, todos aqueles que foram redimidos pelo Cordeiro. O propósito eterno de Deus de ter um povo exclusivo para si vai se cumprir:

Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; Vós, que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo de Deus; que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia. (1 Pedro 2:9,10)

E nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai; a ele glória e poder para todo o sempre. Amém.(Apocalipse 1:6)

Digno és de tomar o livro, e de abrir os seus selos; porque foste morto, e com o teu sangue nos compraste para Deus de toda a tribo, e língua, e povo, e nação; E para o nosso Deus nos fizeste reis e sacerdotes; e reinaremos sobre a terra.

(Apocalipse 5:9,10)

Uma nação de ministros que pode se relacionar diretamente com Deus por meio do cordeiro, Jesus. Um reino de sacerdotes fala de relacionamento direto com Deus, com apenas a mediação do próprio Deus na pessoa do Filho, Jesus Cristo. Essa foi a proposta feita por Deus ao povo de Israel, logo no início de sua constituição como nação.  

 

Terceirizar nossa espiritualidade é uma consequência do medo

Se temos medo é porque não conhecemos a pessoa com quem estamos nos relacionando. O apóstolo João afirma que o medo vem porque não experimentamos plenamente o amor de Deus (I João 4:18), ou seja não conhecemos o Deus da bíblia. Às vezes você pode pensar: “Ah Mayara, mas o Deus do Antigo Testamento parece tão bravo e irado, como não ficar com medo? O próprio texto de Êxodo 19 mostra como Deus deixa claro que não queria que os israelitas se aproximassem do monte Sinai!”. É um grande equívoco pensar que existem dois deuses na Bíblia, um irado (AT) e um gracioso (NT). O ponto chave é que tanto a santidade e justiça são partes do caráter de Deus, quanto bondade e graça. Se fizermos uma leitura rápida desses textos podemos realmente chegar a essa conclusão de que Deus não queria proximidade.

Todavia, vemos muitas pessoas no Antigo Testamento se aproximando de Deus e buscando conhecê-Lo, e em todos esses episódios vemos Deus os recebendo e aceitando sua adoração. Samuel era da tribo de Efraim e dormia ao lado da Arca da Aliança[1]. Davi era da tribo de Judá e dançou na presença da Arca, vestindo uma túnica sacerdotal. E por toda sua vida experimentou a graça de Deus (I Cr 21:13). Temos também o exemplo daqueles que morreram fuminados (Uzá – II Samuel 6:7), ou sofreram consequências terríveis por infringirem as leis estabelecidas para o culto ao Senhor, como o rei Uzias (II Crônicas 26:16).

A vontade de Deus era que a nação toda de Israel fosse sacerdotal, portanto as preparações e restrições estabelecidas pelo livro de Levítico (que para muitos é um livro chato e longo) seria direcionada para todo o Israel, não somente para a tribo de Levi. O estabelecimento da tribo de Levi, como tribo sacerdotal – representantes de Israel diante de Deus – se deu após a rejeição do povo de se relacionarem diretamente com Deus e especificamente após o episódio do Bezerro de Ouro (Êxodo 32). Êxodo traz de modo muito claro a disposição de Deus em se relacionar com os seres humanos, e Levítico mostra que esse relacionamento não é de qualquer jeito. Estamos nos relacionando com um Deus santo, que é fogo consumidor.

 

Terceirizar nossa espiritualidade nos mantém distantes de Deus

Terceirizar nossa espiritualidade é colocar mediadores, além de Cristo, em nosso relacionamento com Deus. Isso é o que praticamente toda religião faz. Mesmo depois do pecado, a vontade de Deus era de relacionamento direito, por meio do Cordeiro que era sacrificado. Todo Antigo Testamento aponta para Jesus, todos os simbolismos do culto no Tabernáculo[2] e posteriormente no Templo são uma sombra da obra de Jesus na Cruz.

A mentalidade de que o pastor é mais santo que eu e as orações dele vão chegar mais rápido até Deus, advém dessa herança religiosa, a qual ensina a nos relacionarmos com Deus, mas não completamente. Quando trazemos isso para o discipulado de Jesus, é permanecer na multidão, seguir a Jesus sem compromisso. Seria isso possível? Pois é, uma situação arriscada! Todas as vezes que precisamos nos recorrer ao pastor, ou ministros de louvor para experimentarmos mais de Deus é sinal de que nossa espiritualidade está fraca; é sinal de que nosso relacionamento com Deus transformou-se em religião, ou nunca existiu.

Não estou afirmando aqui que não precisamos de um pastor ou igreja local, ou mesmo de um irmão mais velho na fé para andar e orar junto. Nada disso! Estou dizendo que sem uma vida de relacionamento real e diário com Deus; uma consciência de que o véu[3] se rasgou e tenho acesso a qualquer momento (por meio do Cordeiro – Jesus), em qualquer lugar à presença de Deus, não suportaremos os momentos de crise, dor e perseguição. Essa pandemia, mais do que nunca, mostrou isso!

 

Terceirizar nossa espiritualidade é sinônimo de amor à própria vida

Moisés fazia parte daquela geração, ele tinha menos pecado que aquele povo? Não! No momento em que o povo ficou com medo e se recusou a subir ao monte o que Moisés falou? (Êxodo 20:20) “Não tenham medo!”. Moisés não teve medo de entrar na presença de Deus, ele sabia da santidade e glória de Deus, ele sabia que não era de qualquer jeito, que existia a maneira de se portar diante do Eterno, com reverência e temor. Todavia, ele perseverou em conhecer ao Senhor, arriscando a própria vida e assim ele experimentou da bondade de Deus (Êxodo 34:13 e 19).

Davi ousou construir um tabernáculo de adoração – modelo 24/7, vinte e quatro horas, sete dias da semana. Esse não era o modelo mosaico, com as separações em Átrio, Lugar Santo e Santíssimo, mas Deus aprovou. Davi foi ousado em se relacionar com Deus, porque ele tinha sede de Deus. Ele não estava com medo da morte, ele queria a presença! (II Samuel 6:12-15 e 17). Quando abrimos o livro de Apocalipse percebemos esse mesmo modelo de adoração diante do trono de Deus – os Seres Viventes, os 24 anciãos e o anjos adorando sem parar, declarando a santidade do Eterno – Apocalipse 4:8. Parece que Davi teve uma visão celestial, como Moisés.

Jesus falou a respeito de amarmos a nossa própria vida (João 12:25). A autopreservação é um caminho de morte. Terceirizar nosso relacionamento com Deus por medo de perder essa vida aqui na terra é o meio pelo qual perdemos a verdadeira vida. Amar mais nossa vida do que a presença de Deus, é um ponto para questionarmos se realmente nascemos de novo, se realmente experimentamos da água da vida.

 

Terceirizar nossa espiritualidade nos leva a fabricar ídolos

Fomos projetados para o fascínio. Nosso coração foi criado para se comprometer, adorar algo ou alguém. Se Deus não ocupar esse lugar nas nossas afeições, outra coisa ocupará. Calvino afirmou: “O coração do homem é uma fábrica de ídolos”. O episódio ocorrido em Êxodo 19 e 20, do chamado de Israel para ser uma nação de sacerdotes e de sua recusa, desemboca no Bezerro de Ouro (cap. 32). Os capítulos que estão no meio é o relato de Moisés no monte, durante 40 dias recebendo a lei do Senhor. O local que o povo deveria estar, junto de Moisés!

Aparentemente é mais fácil dizer: “Moisés suba em meu lugar. Fale com Deus no meu lugar, e faremos o que você disser!”. Ah meus queridos, isso é um grande engano! Se nosso coração não estiver completamente comprometido com uma pessoa, se nossas afeições não estiverem envolvidas a ponto de esquecermos de nós mesmo e nossos desejos tortos, não faremos nada do que nos comprometemos religiosamente fazer.

Todas as vezes que deixamos de praticar a presença de Deus, todas as vezes que outra pessoa sobe em nosso lugar, fabricamos ídolos. Ídolos podem parecer coisas legitimas, não é simplesmente uma estátua que você tem na mão, mas aquilo que investimos nosso tempo, dinheiro e afeições.

 

Que possamos subir ao monte, conscientes de que o véu foi rasgado e podemos nos relacionar com o Eterno, por meio do Cordeiro! Que possamos desejar estar com o Senhor independente do que isso possa nos custar!



[1] Uma ressalva importante: A Arca da Aliança era o símbolo da suprema presença de Deus no Tabernáculo (Moisés), o período em Siló (Juízes e Samuel), e no Templo (a partir do período de Salomão). Ela ficava no lugar mais santo, o lugar santíssimo, local em que apenas o Sumo Sacerdote (descendentes de Arão) poderiam entrar uma vez ao ano.

[2] O tabernáculo era dividido, basicamente, em três partes: Átrio – local onde o sacrifício e a maior parte das atividades do culto acontecia; Lugar Santo – Local em que apenas os sacerdotes poderiam entrar; Santo dos santos – Esse local apenas o Sumo Sacerdote poderia entrar uma vez ao ano, para oferecer o sacrifício anual e fazer a expiação (tirar o pecado do povo).

[3] No tabernáculo e também no templo o Lugar Santo e o Santíssimo eram separados por um véu – um tecido feito de linho fino (Êxodo 26:31). Quando Jesus morreu, os evangelhos relatam que o véu do templo se rasgou de alto a baixo (Marcos 15:38 e Lucas 23:45).

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