sábado, 30 de abril de 2022

Muito da realidade na ficção

 

"Por que você está tão furioso?", o Senhor perguntou a Caim. "Por que está tão transtornado? Se você fizer o que é certo, será aceito. Mas, se não o fizer, tome cuidado! O pecado está à porta, à sua espera, e deseja controlá-lo, mas é você quem deve dominá-lo."

(Gênesis 4:6,7)

 

Imagem do primeiro filme de ficção científica (1902

Não sei se você tem o hábito de ler ficção, mas elas costumam nos dizer muito sobre a realidade e são ferramentas eficazes na transmissão de princípios e valores. Um cristão deve adquirir o hábito de ler ficções, pois ao termos contato com os mais diversos gêneros literários da nossa época podemos entender melhor os escritos bíblicos. Como assim? Deus escolheu gêneros literários específicos de épocas específicas[1] para transmitir sua mensagem. Quando Deus escolheu falar a língua dos homens ele também incluiu recursos artísticos e estéticos dessa linguagem. Coisa linda, não é mesmo!?

No mês de dezembro estava lendo uma ficção fantástica, o primeiro volume da trilogia do professor Wurlitzer[2]: “As crônicas de Olam”. E no mês de Abril comecei esse romance policial da famosa escritora britânica, Agatha Christie. Confesso que minha curiosidade pela obra veio com o lançamento do filme – Morte no Nilo – que ainda não tive oportunidade de assistir. A leitura é bem tranquila e o leitor vai entendendo os fatos a partir das falas dos personagens.

A trama envolve diferentes pessoas da alta sociedade inglesa e norte americana, uma melhor amiga que “rouba” o noivo da outra, ressentimentos, e é claro um assassinato. O ambiente da trama é o Nilo, e o consagrado personagem de Agatha Christie, Hercule Poirot[3] está de férias no cruzeiro e é convidado a investigar o caso. É interessante como a escritora coloca Poirot, com sua experiência criminal, como uma espécie de psicólogo e conselheiro daqueles que estão envolvidos na trama. Nos dizeres do personagem: “A psicologia é o fator mais importante num caso.”

 O Pecado está à porta

Uma das falas de Poirot que mais me chamou atenção foi em sua conversa com Jackeline Bellefort, a amiga traída. Após ouvir o que estava em seu coração e perceber que a amargura havia tomado conta do coração da moça, Poirot dá um conselho muito semelhante ao que Deus dá a Caim, logo após o culto que ele e Abel prestaram ao Senhor.

– Mademoiselle, eu lhe imploro, não faça isso.

– O senhor quer que eu deixe Linnet em paz.

– É algo mais profundo do que isso. Não abra seu coração ao mal.

Boquiaberta, uma expressão de perplexidade surgiu em seu olhar.

Poirot continuou, em tom grave:

 – Porque se abrir, o mal entrará... Sim, o mal certamente entrará... Entrará e fará morada dentro da senhorita. Depois de um tempo, já não será possível expulsá-lo.

(Conselho de Poirot à senhorita de Bellefort)

 

Essa é uma lição preciosa! Não podemos achar que o pecado é inofensivo, suas consequências são devastadoras e a tendência é nos levar para níveis maiores de queda espiritual e moral. Quando Poirot fala sobre “não ser possível expulsá-lo”, ele se refere às sérias consequências que os sentimentos de amargura e vingança podem causar. Um sentimento errado, cultivado em nossos corações podem ter consequências irreversíveis. Como assim, a graça de Deus não pode alcançar esses corações que se entregaram completamente ao mal? Pode, mas nem sempre isso acontece. Muitos se perdem para sempre!

São exemplos disso, Caim e Judas. Ambos não encontraram o caminho para o arrependimento de seus sentimentos desalinhados e suas ações de morte. A graça de Deus é poderosa para superabundar onde o pecado um dia reinou, mas isso não nos permite brincarmos com o mal.  A advertência dos apóstolos é sempre para fugirmos da aparência do mal, praticarmos o perdão – para que a amargura não crie raízes em nossos corações –, fugirmos das paixões desse mundo e buscarmos sempre estar em paz com todos. Essas advertências são maneiras de Deus nos dizer: “Para que suas emoções funcionem bem, você precisa de mim. Seus afetos e paixões precisam estar voltados para mim! Eu preciso ser o centro dos seus afetos!”

É interessante que Caim mata seu irmão, logo após participar de um culto ao Senhor. Parece completamente estranho e pouco provável de acontecer, mas é algo completamente real onde há corações que brincam com o pecado. Em um de seus discursos públicos, Jesus mostrou a todos a raiz do pecado: “Mas, o que sai da boca, procede do coração, e isso contamina o homem. Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, fornicação, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias”. (Mateus 15:18,19)

 

Os vilões da ficção

Não sei se você já percebeu, mas normalmente um vilão, com raras exceções, em algum momento da narrativa, praticava o bem. Usando a linguagem de “Star Wars”[1], antes de passar para o “Dark side of force” (lado escuro da força) o vilão estava entre os “heróis”. Os autores das ficções, em sua maioria, mostram que essa mudança de “lado” se dá devido a pensamentos e desejos errados – anseio por poder, fama ou dinheiro. O progresso desses personagens é se afundar cada vez mais no abismo. A maior parte deles tem um fim sem redenção, mas há exceções como na própria franquia “Star Wars”, com seu personagem Darth Vader.

Outro ponto interessante para se observar nessas mesmas obras são as ligas de vilões. Normalmente elas se formam a partir do ressentimento, ou raiz de amargura, que boa parte nutre contra algum dos “mocinhos”. Ou mesmo, porque os anseios por reino, poder e glória já dominam o coração dos mesmos. Há também aqueles que estão, de outra maneira, emocionalmente desequilibrados, ou se encontram em situação de vulnerabilidade emocional[2], sendo assim, presas fáceis para “o chefe dos vilões”. Estes, por sua vez, possuem uma personalidade forte com bastante habilidade argumentativa, perspicácia e controle emocional.

O que poderíamos dizer diante de tantas realidades que as ficções nos mostram? O coração do homem é um dispositivo de adoração! Fomos projetados para esse fim, e nossa natureza caída terá uma tendência a escolher o que é mal. Mas, a graça de Deus nos capacita a escolhermos o que é bom!

 

Conclusão

Aquilo que cultivamos em nossos corações, floresce e frutifica, seja coisa boa ou coisa ruim. Não pense que conseguimos por nossas próprias forças cultivar alguma coisa boa, o caminho para esse tipo de plantio passa pelas disciplinas espirituais. É justamente por esse motivo que precisamos tanto da oração. E em nossas orações, precisamos sempre clamar ao Pai, graça, para vencer o pecado. Graça, para amá-Lo mais do que todas as outras coisas. Graça, para ser semelhante a Cristo.

É somente uma vida de crucificação – negando nossa vontade caída – que nos levará a ser quem nós nascemos para ser. Somente a cruz pode esconder quem não somos[3]. Esse é motivo pelo qual temos tantas versões terríveis de seres humanos; temos nos deparado com as piores versões nos últimos tempos, não é mesmo? Nunca duvide disso, podemos fazer (ser) coisas horripilantes quando andamos independentes de Deus. Só Jesus pode nos ensinar a ser a versão de humanidade que nascemos para ser. Somente em Jesus podemos ser a melhor versão de nós mesmos.

Por fim, irmãos, quero lhes dizer só mais uma coisa. Concentrem-se em tudo que é verdadeiro, tudo que é nobre, tudo que é correto, tudo que é puro, tudo que é amável e tudo que é admirável. Pensem no que é excelente e digno de louvor.

(Filipenses 4:8)



[1] Guerra nas estrelas – é uma franquia do tipo space opera estadunidense criada pelo cineasta George Lucas, que conta com uma série de nove filmes de fantasia científica e dois spin-offs. O primeiro filme foi lançado apenas com o título Star Wars, em 25 de maio de 1977, e tornou-se um fenômeno mundial inesperado de cultura popular.

[2] Um exemplo de personagens assim é Queenie Goldstein (interpretada pela atriz norte-americana, Alison Loren) da franquia Harry Potter. Filmes: “Animais fantásticos”.

[3] Parte da música dos Arrais, 17 de Janeiro. 



[1] A Bíblia (livros) é um compilado de diversos gêneros literários: Narrativas, cartas, profecias, evangelhos (biografias teológicas), poesias, apocalipses, etc.

[2] L. L. Wurlitzer.

[3] Hercule Poirot é um detetive belga fictício criado pela romancista inglesa Agatha Christie. Junto com Miss Marple, é uma das personagens mais famosas da romancista, aparecendo em 33 romances e 51 contos, publicados entre 1920 e 1975.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Sobrenatural - Anjos e Demônios

 

O qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; Porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele. E ele é a cabeça do corpo, da igreja; é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência. Porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse,

(Colossenses 1:15-19)



Um dos pontos dentro do imaginário cristão que mais geraram mitos e diferentes teologias diz respeito ao surgimento e aparência dos anjos e demônios. Normalmente esses mitos recebem modificações nas diferentes gerações e localidades que o abarcam. Ao mesmo tempo que observamos os espantalhos criados em cima dessas duas categorias de seres celestiais, não podemos ignorar a menção dos mesmos nos relatos bíblicos. E dentro dessa perspectiva precisamos nos questionar, como faz Michael Heiser no prefácio de seu livro “Sobrenatural”: “Você realmente acredita no que a Bíblia diz?”.  

O que são os anjos? Suas características físicas se assemelham às obras de arte renascentistas, semelhantes a bebês alados, brancos de olhos azuis? E os demônios, o que são e como surgiram? Estão na mesma categoria dos anjos? O que a Bíblia tem a nos dizer a esse respeito?

O que aconteceu no Éden?

O Éden era a casa de Deus. Era o local de intercessão entre céu e terra. E sendo a casa de Deus, esse jardim era habitado por toda sua família – seres celestiais e humanidade (quando foi criada). Dentre os seres celestiais temos os Querubins / Serafins – serpentes aladas flamejantes – que vivem diante do trono de Deus. Esses seres são responsáveis pela guarda da presença de Deus, temos a descrição deles em Ezequiel 1 e Apocalipse 4 (Seres viventes).

Éden também era o lar de Deus. Ezequiel se refere ao Éden como “o jardim de Deus” (Ezequiel 28:13; 31:8-9). Isso não me surpreende, de jeito nenhum. O que talvez seja surpreendente é saber que, logo após chamar o Éden de “jardim de Deus,” Ezequiel o chama de “montanha santa de Deus” (28:14). (Michael Heiser)

Essa linguagem era perfeitamente entendida pelo imaginário do Antigo Oriente Próximo, a maior parte dos povos tanto daquela região como os da região da América vão construir “montanhas” para se relacionarem com o divino. Essas montanhas eram chamadas de “Zigurates”, uma espécie de pirâmides. Uma tentativa de trazer o céu para a terra, novamente[1].

Quando Deus cria o homem e a mulher, ele compartilha essa notícia com o restante de sua família, todavia, parte dela não concorda com os planos do Criador, então acontece uma quebra na unidade celestial. Um dos Querubins da guarda de Deus age de modo independente e seduz a humanidade a viver também dessa forma.

O Conselho Divino

Desde o princípio, Deus escolheu compartilhar sua natureza e governo. Ele escolheu viver em família. É fato que constatamos isso ao afirmarmos que Deus é Pai, Filho e Espírito; todavia, a família de Deus, além do próprio Deus, é também composta por Seres Celestiais. Quando a humanidade foi criada, diversos Seres Celestiais já existiam e governavam a criação juntamente com o Senhor.

Há diversas passagens bíblicas que se referem a esse Conselho Divino. Normalmente são referidos como “Filhos de Deus” ou “deuses”. Na Bíblia hebraica a palavra para deuses é “elohim”, muitos cristãos acham que esse é um nome de Deus, mas essa é a forma plural para se referir a qualquer espírito ou corpo celeste – sejam demônios, alma de seres humanos após a morte e até mesmo o próprio Deus. Eles também podem ser identificados como “Exército dos céus”, que recebiam a adoração das nações que não conheciam ao Senhor, e em alguns momentos da história receberam a adoração também do povo de Israel (Deuteronômio 29:26 e 32:17).

Deus preside a assembleia dos céus; no meio dos seres celestiais, anuncia seu julgamento: [...]Eu digo: ‘Vocês são deuses, são todos filhos do Altíssimo. Morrerão, porém, como simples mortais e cairão como qualquer governante’". Levanta-te, ó Deus, e julga a terra, pois todas as nações te pertencem.

(Salmos 82:1, 6-8)

Os deuses do Salmo 82:1 são chamados de “filhos do Altíssimo [Deus]” no versículo posterior (v.6). Os “filhos de Deus” aparecem várias vezes na Bíblia, geralmente na presença de Deus (como em Jó 1:6, 2:1). […] Os filhos de Deus também são responsáveis por decisões. Aprendemos em 1 Reis 22 (como em muitas outras passagens) que o negócio de Deus incluía interação com a história humana. (Michael Heiser)

Esses seres celestiais que compõem o Conselho Divino se rebelaram contra o Senhor, e conforme vemos no relato bíblico vão direcionar a humanidade também nesse caminho de rebelião. É o que acontece em Babel (Gn 11). O episódio de Babel é o momento em que Deus deixa que as nações vivam de modo independente, longe de seus preceitos e de Sua presença. Deus abre mão temporariamente de seu plano original – expansão do Éden por toda terra e governo sobre todas as nações. Parece estranho ler isso, mas é exatamente isso que o texto bíblico diz (Deuteronômio 32:8[2]).

O Salmo 82 mostra que os Seres Celestiais designados para governar as nações praticaram injustiças e não observaram os preceitos de Deus, portanto estão condenados a perderem sua imortalidade. Judas relata, no versículo 8 de sua carta, que alguns Anjos “não se limitaram à autoridade recebida” e estão acorrentados até o dia do julgamento.

 

Anjos e Demônios

O significado da palavra Anjo, na Bíblia, é mensageiro. O que vemos nos relatos do Antigo e Novo Testamento (Gn 18 e 19 / Lucas 1) é que eles tem uma aparência humana, mas algo de celestial, pois os que tiveram experiência com esses seres os identificavam como mensageiros de Deus. Não há nenhuma descrição de asas e afins. Há também uma expressão muito interessante no Antigo Testamento, o “Anjo do Senhor”, é possível afirmar – pelas características e descrições de cada texto – que trata-se do próprio Deus em forma humana, os teólogos chamam isso de “Teofania”.

Os demônios são seres diferentes, G. H Pember os define como “seres desencarnados”, ou seja, não possuem corpo. A tradição hebraica entende que os demônios são espíritos dos Nefilim (Gn 6)[3], a alma dos filhos que alguns Anjos (Filhos de Deus) tiveram com as “filhas dos homens”. Michael Heiser afirma:

Demônios são espíritos defuntos dos nefilim que morreram antes e durante o Dilúvio. Eles perambulam pela terra atordoando os homens, em busca de reincorporação. [...] A Bíblia não diz, em Gênesis, muito mais a respeito do que aconteceu, mas fragmentos desta história se revelam em outras partes da Bíblia, bem como em tradições judaicas não incluídas na Bíblia que os autores do Novo Testamento conheciam bem e, inclusive, citaram em seus escritos. Por exemplo, Pedro e Judas descrevem os anjos que pecaram antes do Dilúvio (2 Pedro 2:4-6 ARC95; leia também Judas 5-6). Algumas das suas citações provêm da literatura judaica que não foi incluída na Bíblia. Pedro e Judas dizem que os filhos de Deus que cometeram esta transgressão foram presos debaixo da terra—ou seja, estão pagando sentença no inferno—até os últimos dias.

 

Conclusão

É importante sabermos essas diferenças, em relação aos Seres Celestiais, tanto para melhor entender e explicar o texto bíblico, como também para crer corretamente e não desejar experiências que misturem essas categorias. Portanto, Anjo é diferente de Serafim, os que vão ultrapassar a esfera celeste para a humana são os primeiros. Ezequiel, Daniel e João viram o Trono de Deus, por isso viram também os Seres que habitam na presença de Deus.

Normalmente nos aproximamos desses estudos com o intuito curioso de saber mais. Desejar ver anjos mais do que conhecer a Cristo, por meio de sua palavra, é um erro. No meio cristão as experiências sobrenaturais mais visadas ou consideradas “fortes” é ver anjos e demônios, todavia, a experiência que fortalece e edifica nossa fé é conhecer a Jesus. Ter mais revelação – luz e olhos para ver – da pessoa de Jesus. Conhecê-Lo é ter mais de Seu caráter em nosso próprio caráter. Refletir mais a glória de Deus.

 



[1] Se você deseja saber um pouco mais sobre o assunto leia: Os outros da Bíblia – André Reinke.

[2] “Quando o Altíssimo distribuiu a terra entre as nações, quando dividiu a humanidade, fixou o limite dos povos, de acordo com o número dos filhos de Deus (o número dos anjos)”. (Versão dos Manuscritos do Mar Morto e Septuaginta, respectivamente)

[3] Há teólogos e exegetas que interpretam esses “Filhos de Deus” como a linhagem de Sete, e “As filhas dos homens” sendo a linhagem de Caim, e os filhos gerados a partir dessa mistura, teriam sido grandes heróis da antiguidade – homens de grande fama e poderosos socialmente.