terça-feira, 18 de julho de 2023

Falando em línguas

 

Sem dúvida, há diversos idiomas no mundo; 

todavia, nenhum deles é sem sentido.

Portanto, se eu não entender o significado do que alguém está falando, serei estrangeiro para quem fala, e ele, estrangeiro para mim.

(1 Coríntios 14:10-11)




Há entre os teólogos um entendimento diverso a respeito do dom de línguas, apresentado pelo apóstolo Paulo[1], como sendo um dos dons dado pelo Espírito Santo de Deus. Entre os entendimentos, há aqueles que entendem que o dom de línguas trata-se da habilidade de aprender línguas humanas, enquanto que outra parte inclui a língua dos anjos e o falar diretamente com Deus. Entre os muitos artigos e livros sobre a temática, também é discutido o objetivo e propósito desse dom. Todavia, o foco desse texto será a respeito da aprendizagem de novas línguas, humanas, diga-se de passagem.

Desde o ano de 2019, após meu treinamento em linguística, tenho trilhado essa estrada do aprendizado de novas línguas. Até o momento em que esse texto está sendo escrito, me encontro no aprendizado de minha quarta língua. Poderia afirmar que é um dom do Espírito de Deus? Acredito que sim. Mas, para te falar a verdade querido(a) leitor(a), eu não tinha a mínima ideia desse dom ou habilidade antes de 2019. Foi mesmo a necessidade ao responder o chamado de Deus que me fez descobrir esse dom.

Confesso que me sinto iniciante, comparando minha experiência à de outras pessoas que dedicaram suas vidas a essa paixão ou mesmo habilidade. Mas, espero que essas singelas impressões a seguir contribuam para sua perspectiva pessoal e quem sabe te incentive a aprender uma nova língua.

 

Língua e cosmovisão

Um dos filmes mais assistidos pelos linguistas[2] é a obra “A chegada” de Denis Villeneuve. O enredo do filme é basicamente a chegada de habitantes de outro planeta na terra, eles posicionam suas naves nas principais cidades da terra e aguardam por contato. Os governos mundiais acionam suas forças militares e seus melhores especialistas em línguas para saberem o que esses seres desejam. Entre a equipe norte americana estava uma linguista, Dra. Lousie Banks, interpretada por Amy Adams. Ela consegue decifrar a linguagem desses visitantes e se comunicar com eles.

Um ponto interessante no processo da aquisição dessa língua extraterrestre é o que acontece com a personagem, ela passa a ver o mundo conforme esses seres. A língua de modo geral está conectada com a forma que um povo vê o mundo, sua cosmovisão. Portanto, suas concepções de tempo, valores, religião e prioridades estão marcados na língua. Coisa linda, não é mesmo!? Esses visitantes que chegam na terra possuíam uma visão peculiar do tempo, passado, presente e futuro estão interligados de maneira que são parte de uma coisa só. Esse fenômeno acontece com a personagem de Amy Adams, ela começa a ter vislumbres do futuro, pois adquiriu a língua dos visitantes.

Essa é uma ilustração interessante do processo de aquisição de uma língua. Seus horizontes e perspectivas são ampliados, você passa a conhecer e a apreciar coisas que antes não tinham nenhum valor e sentido para você. A aquisição de língua te ensina a respeitar a perspectiva do outro, e o processo árduo e lento podem te levar ao quebrantamento e humildade.

 

Babel, benção ou maldição?

E disse o Senhor: "Eles são um só povo e falam uma só língua, e começaram a construir isso. Em breve nada poderá impedir o que planejam fazer. Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros". Assim o Senhor os dispersou dali por toda a terra, e pararam de construir a cidade. Por isso foi chamada Babel, porque ali o Senhor confundiu a língua de todo o mundo. Dali o Senhor os espalhou por toda a terra.

(Gênesis 11:6-9 NVI)

Um dos problemas que nos deparamos ao lidarmos com os juízos de Deus é a dificuldade de enxergar a beleza de tudo isso. O contexto de Babel é de desobediência à ordem dada por Deus. Logo após a saída da arca, Deus havia ordenado: “Espalhem-se”, e de maneira contrária eles responderam: “Não vamos nos espalhar!”. Deus intervém na rebeldia humana salvando-os de sua própria destruição.

Ao fazer isso Deus age novamente de modo criativo e inteligente. Ele desenvolve um meio de guardar saberes e habilidades, sem que esses mesmos pudessem levar a humanidade a um novo processo de destruição e consequentemente, juízo. A intervenção divina, por meio das barreiras linguísticas foi uma maneira de guardar a humanidade para a plenitude dos tempos, para a vinda do Messias. Como também foi um modo de expressar a diversidade trinitária em mais um aspecto da humanidade.

Outro ponto interessante a se observar é que essas barreiras linguísticas seriam desenvolvidas, de um modo ou de outro. A ordem dada inicialmente por Deus, se obedecida, traria, com o passar do tempo, o desenvolvimento de novos dialetos, e possivelmente novas línguas. Portanto, o que vemos nessa intervenção mais direta é simplesmente a vontade soberana de Deus sendo cumprida e estabelecida.

 

Uma perspectiva trinitária

Um dos pontos interessantes que podemos observar no ser trinitário de Deus é unidade na diversidade. Três pessoas distintas unidas em um só Deus. A humanidade foi dividida em grupos étnico-linguísticos e através da Trindade, na pessoa do Espírito Santo, foi reconciliada em um único corpo, a Igreja. Tanto na igreja primitiva, expressa no relato de Atos dos Apóstolos, quanto diante do Trono de Deus essa diversidade linguística e étnica será preservada. Seremos apenas um povo, mas ricos em línguas e expressões culturais.

Em Deus não teremos barreiras linguísticas ou culturais, mas ao mesmos tempo usaremos nossos artefatos culturais e linguísticos para louvá-lo e glorifica-lo. Nossa adoração será plural, rica e bela, pois teremos povos de todas as etnias e grupos linguísticos adorando Aquele que se assenta no Trono do universo. Essa cena foi vista pelo apóstolo João (Apocalipse 7), e tem sido uma realidade à cada novo crente que se torna parte da família de Deus, à cada Bíblia traduzida e a cada igreja plantada nos lugares mais distantes da terra.

Da mesma forma que Deus repartiu com os membros do Corpo de Cristo, diversidades de dons e talentos, Ele também repartiu a beleza de Seu próprio ser nas línguas e culturas da terra. Não estou desconsiderando aqui as consequências da queda e do pecado. Todavia, quero afirmar que da mesma forma que o pecado teve consequências cósmicas e transcendentes, a restauração de todas as coisas que está por vir, será também cósmica e completa. Línguas e culturas serão usadas para a restauração da terra e glorificação do nome de Deus.

 

 



[1] I Coríntios 12

[2] Tive contato com essa produção durante o Curso de Linguística e Missiologia (CLM), oferecido pela missão ALEM em Brasília.