Talvez você como muitos
leitores (ouvintes) da Bíblia tenha se questionado: “Por que o Deus do Antigo Testamento
(AT) parece tão irado, enquanto que o Deus do Novo Testamento (NT) tem uma
aparência mais graciosa e acolhedora? São deuses diferentes?”. Esses
questionamentos se dão, na maioria das vezes, por não lermos a narrativa de
forma completa, ou por estarmos acostumados a ouvir[1]
que a graça veio por meio de Jesus, no NT. Mas, se prestarmos atenção no
desenrolar da revelação bíblica, vamos perceber esse Deus gracioso e imutável está
presente em todas as páginas da Bíblia.
Geerhardus Vos, Herman
Bavinck e a tradição reformada nos apresenta a Teologia Pactual[2], e
nos ajuda a perceber que a graça já estava presente desde o livro de Gênesis. O
Deus bondoso e gracioso que enviou seu único filho para morrer na cruz pelos
nossos pecados[3]
é o mesmo Deus do AT. A teologia pactual nos ajuda a perceber que os momentos
que vieram após Gênesis 3:15 são simplesmente renovação do mesmo pacto
estabelecido no Éden. Tanto entre os patriarcas como em Moisés no Sinai, Deus
trata seu povo com base em seus preceitos eternos.
A Teologia do Pacto se
divide basicamente em dois períodos: 1) Pacto das Obras e 2) Pacto da Graça. O
primeiro se inicia na criação do homem e termina em Gênesis 3. O segundo se
inicia em Gênesis 3:15 e finaliza com o estabelecimento do reino cósmico do
Messias. A Teologia Bíblica, desdobramento da Teologia Hermenêutica
(interpretação), nos permite enxergar melhor essa realidade pactual de Deus com
seu povo. Pois ela nos ensina a ler as Escrituras como se estivéssemos lendo
uma única história.
Pontuações
importantes
Nossas traduções da
Bíblia, sejam elas no inglês ou português, tem muito da versão grega da Bíblia
hebraica, a famosa Septuaginta (LXX). Dentre as muitas dificuldades
apresentadas pelo processo de tradução, o termo hebraico berith, foi recebido no grego como diatheke – que era entendido como último desejo, e posteriormente
foi traduzido como testamento. Todavia,
a ideia de testamento era totalmente desconhecida dos antigos hebreus. Vale
considerar também que em sua gama de significados, testamento trata-se de um documento voluntário, passível de
modificações e ajustes, principalmente após a morte do testador. Portanto, a
palavra pacto expressa melhor o
sentido original do termo berith[4].
O objetivo de Deus
desde o princípio era ser conhecido. Jesus em sua oração, antes da cruz, fala
que a vida eterna é conhecer o Pai e o Filho (João 17:3). Paulo afirmou em sua
carta aos cristãos de Filipos que o bem mais precioso que ele possuía era o
conhecimento do Cristo, o crucificado (Filipenses 3:9). Portanto, como afirmou
Francis Shaeffer, o Deus criador dos céus e da terra, é o Deus que se revela. Ele
faz isso como o desenrolar de um drama dentro da história da humanidade.
A ideia bíblia e
semítica de conhecer está interligada
com a experiência íntima da vida. Ante a isso, conhecer pode significar amar ou separar em amor. Por isso que o ambiente da revelação não é uma
escola, mas um pacto[5].
Não é em vão que os profetas e até mesmo Paulo no NT utilizam a linguagem do
casamento para falar sobre a relação entre Deus e seu povo, Cristo e a Igreja. Linguagem
humana para que pudéssemos entender de alguma forma o mistério da união da
humanidade com o Deus trino.
O
Pacto das Obras
O Pacto das Obras é
estabelecido no momento em que Deus coloca a humanidade, homem e mulher, como
cabeça da criação. Ele é proferido no momento em que Deus dá a Adão (homem e
mulher) aquilo que chamamos dos “Mandatos”[6].
Gênesis 1:28: “E Deus os abençoou e lhes
disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai
sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja
pela terra.”
O Pacto das Obras é
quebrado pelo homem, e assim ele perde o domínio sobre a criação, deixando o
Pacto das Obras incompleto. O Pacto das Obras não é substituído pelo Pacto da
Graça, mas, Jesus vem para cumprir o Pacto das Obras (Efésios 1:10). Ele
substitui o lugar de Adão, tornando-se o cabeça. Por esse motivo todo joelho vai
se dobrar e toda língua vai confessar que Jesus Cristo é o Senhor. Através de
Cristo a humanidade recebeu de volta seu lugar de senhorio sobre a terra e todo
o cosmo. Aqueles que estão em Cristo, tornaram-se co-herdeiros / corregentes do
Cosmo, como era a vontade de Deus desde o princípio.
O
Pacto da Graça – a promessa-mãe
Em Gênesis 3:15 Deus promete
um redentor, o descente da mulher que pisará a cabeça da serpente, pagando
assim o preço para que a humanidade retornasse à sua posição de origem. Não estamos
afirmando que os primeiros ouvintes desse texto, da história da criação,
associavam a “semente da mulher” à Jesus. O que é possível visualizar é que os
primeiros ouvintes, como as gerações seguintes do povo hebreu, sabiam com
certeza que Deus tinha um plano para trazer a humanidade de volta para Ele.
O próprio Deus vem
ao homem, planta a inimizade, inicia a guerra e promete a vitória. O homem não
tem nenhuma participação exceto a de ouvir e aceitar com fé. A promessa e a fé
são o conteúdo do pacto da graça que agora é estabelecido para o homem, que
revela o caminho para a casa de Deus a essa criatura caída e perdida, e dá
acesso à salvação eterna. [...]
Assim como era no primeiro anúncio, no
qual Deus fixou a inimizade, começou a luta e prometeu a vitória, Deus se
mantém o primeiro e o último em todas as dispensações[7]
do pacto da graça, seja em Noé, Abraão, Israel ou na igreja do Novo Testamento.
Promessa, dom e graça são e permanecem sendo o conteúdo desse pacto. No
decorrer do tempo, o seu conteúdo é mais claramente revelado e se torna mais
evidente o quão rico é esse pacto. Entretanto, em princípio, tudo já está
contido na promessa-mãe. A expressão maior e mais inclusiva da promessa do
pacto da graça é: “Eu serei teu Deus e o Deus do teu povo”. (Herman Bavinck)
Por isso o pacto da
graça pode permanecer o mesmo ao longo de toda a história da humanidade, porque
ele depende inteiramente de Deus. E Deus é imutável e fiel, completamente capaz
de realizar o que Ele mesmo estabeleceu. O que temos após Gênesis 3:15 são
renovações desse pacto, a revelação de como esse pacto se cumpriria. Primeiro
temos os descendentes de Sete, Noé e mais especificamente Abraão. Em Abraão
Deus renova o pacto da graça com Isaque e o Messias vem da linhagem de Israel
(Jacó).
O pacto da graça é um
pacto eterno que se reproduz de geração em geração. O povo pode deixar de andar
conforme as diretrizes estabelecidas nesse pacto; Deus pode abandonar seu povo
por um tempo, sujeita-los a castigos e julgamento, todavia, Deus não pode violar
o seu pacto, porque é um pacto de graça que não depende da conduta dos homens,
mas repousa exclusivamente na compaixão de Deus. Por trás do pacto da graça,
como bem afirmou Bavinck, repousa a soberana e onipotente vontade de Deus, que
por meio de Jesus, garante o triunfo do reino de Deus sobre todo o poder do
pecado.
Conclusão
Na plenitude dos tempos
a semente da mulher nasceu, pisou a cabeça da serpente, derrotando assim o
poder do pecado e da morte. A semente da mulher é o primogênito dentre os
mortos, o primeiro ser humano a experimentar a ressurreição. Essa é a esperança
da nossa salvação, a ressurreição dos mortos. A vitória completa sobre a morte,
por meio do Pacto da Graça. A aliança eterna entre Deus e os seres humanos.
A semente da mulher, o
Messias, Jesus Cristo, o autor e consumador da nossa fé, voltará para governar
as nações e restaurar a terra. À Ele toda glória, pelos séculos dos séculos.
Maranata.
[1]
Devido à Teologia dispensacionalista que se espalhou com muita rapidez em solo
brasileiro. Essa tradição teológica teve início no final do século XX.
[2] A
teologia pactual tem raízes na tradição reformado do século XVI e XVII, é
fundamento hermenêutico de muitas igrejas Batistas e Presbiterianas.
[3] E
assim, satisfazer a vontade do Pai.
[4]
Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento, editora Cultura Cristã, Geerhardus Vos (Cap. 2).
[5]
Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento, editora Cultura Cristã, Geerhardus Vos (Cap. 1).
[6] 1)
Mandato Social; 2) Mandato Cultural; 3) Mandato Espiritual.
[7] É
válido ressaltar que Bavinck não utiliza aqui o termo como os
dispensacionalistas do século XX, ele está há uma século antes. O termo
dispensação é usado simplesmente como período de tempo.