segunda-feira, 21 de agosto de 2023

O Pacto da Graça


E porei inimizade entre ti e a mulher, 
e entre a tua semente e a sua semente; 
esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.
(Gênesis 3:15)



Local: Vaticano - Capela Sistina

Talvez você como muitos leitores (ouvintes) da Bíblia tenha se questionado: “Por que o Deus do Antigo Testamento (AT) parece tão irado, enquanto que o Deus do Novo Testamento (NT) tem uma aparência mais graciosa e acolhedora? São deuses diferentes?”. Esses questionamentos se dão, na maioria das vezes, por não lermos a narrativa de forma completa, ou por estarmos acostumados a ouvir[1] que a graça veio por meio de Jesus, no NT. Mas, se prestarmos atenção no desenrolar da revelação bíblica, vamos perceber esse Deus gracioso e imutável está presente em todas as páginas da Bíblia.

Geerhardus Vos, Herman Bavinck e a tradição reformada nos apresenta a Teologia Pactual[2], e nos ajuda a perceber que a graça já estava presente desde o livro de Gênesis. O Deus bondoso e gracioso que enviou seu único filho para morrer na cruz pelos nossos pecados[3] é o mesmo Deus do AT. A teologia pactual nos ajuda a perceber que os momentos que vieram após Gênesis 3:15 são simplesmente renovação do mesmo pacto estabelecido no Éden. Tanto entre os patriarcas como em Moisés no Sinai, Deus trata seu povo com base em seus preceitos eternos.

A Teologia do Pacto se divide basicamente em dois períodos: 1) Pacto das Obras e 2) Pacto da Graça. O primeiro se inicia na criação do homem e termina em Gênesis 3. O segundo se inicia em Gênesis 3:15 e finaliza com o estabelecimento do reino cósmico do Messias. A Teologia Bíblica, desdobramento da Teologia Hermenêutica (interpretação), nos permite enxergar melhor essa realidade pactual de Deus com seu povo. Pois ela nos ensina a ler as Escrituras como se estivéssemos lendo uma única história.

 

Pontuações importantes

Nossas traduções da Bíblia, sejam elas no inglês ou português, tem muito da versão grega da Bíblia hebraica, a famosa Septuaginta (LXX). Dentre as muitas dificuldades apresentadas pelo processo de tradução, o termo hebraico berith, foi recebido no grego como diatheke – que era entendido como último desejo, e posteriormente foi traduzido como testamento. Todavia, a ideia de testamento era totalmente desconhecida dos antigos hebreus. Vale considerar também que em sua gama de significados, testamento trata-se de um documento voluntário, passível de modificações e ajustes, principalmente após a morte do testador. Portanto, a palavra pacto expressa melhor o sentido original do termo berith[4].

O objetivo de Deus desde o princípio era ser conhecido. Jesus em sua oração, antes da cruz, fala que a vida eterna é conhecer o Pai e o Filho (João 17:3). Paulo afirmou em sua carta aos cristãos de Filipos que o bem mais precioso que ele possuía era o conhecimento do Cristo, o crucificado (Filipenses 3:9). Portanto, como afirmou Francis Shaeffer, o Deus criador dos céus e da terra, é o Deus que se revela. Ele faz isso como o desenrolar de um drama dentro da história da humanidade.

A ideia bíblia e semítica de conhecer está interligada com a experiência íntima da vida. Ante a isso, conhecer pode significar amar ou separar em amor. Por isso que o ambiente da revelação não é uma escola, mas um pacto[5]. Não é em vão que os profetas e até mesmo Paulo no NT utilizam a linguagem do casamento para falar sobre a relação entre Deus e seu povo, Cristo e a Igreja. Linguagem humana para que pudéssemos entender de alguma forma o mistério da união da humanidade com o Deus trino.

 

O Pacto das Obras

O Pacto das Obras é estabelecido no momento em que Deus coloca a humanidade, homem e mulher, como cabeça da criação. Ele é proferido no momento em que Deus dá a Adão (homem e mulher) aquilo que chamamos dos “Mandatos”[6]. Gênesis 1:28: “E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.”

O Pacto das Obras é quebrado pelo homem, e assim ele perde o domínio sobre a criação, deixando o Pacto das Obras incompleto. O Pacto das Obras não é substituído pelo Pacto da Graça, mas, Jesus vem para cumprir o Pacto das Obras (Efésios 1:10). Ele substitui o lugar de Adão, tornando-se o cabeça. Por esse motivo todo joelho vai se dobrar e toda língua vai confessar que Jesus Cristo é o Senhor. Através de Cristo a humanidade recebeu de volta seu lugar de senhorio sobre a terra e todo o cosmo. Aqueles que estão em Cristo, tornaram-se co-herdeiros / corregentes do Cosmo, como era a vontade de Deus desde o princípio.

 

O Pacto da Graça – a promessa-mãe

Em Gênesis 3:15 Deus promete um redentor, o descente da mulher que pisará a cabeça da serpente, pagando assim o preço para que a humanidade retornasse à sua posição de origem. Não estamos afirmando que os primeiros ouvintes desse texto, da história da criação, associavam a “semente da mulher” à Jesus. O que é possível visualizar é que os primeiros ouvintes, como as gerações seguintes do povo hebreu, sabiam com certeza que Deus tinha um plano para trazer a humanidade de volta para Ele.

O próprio Deus vem ao homem, planta a inimizade, inicia a guerra e promete a vitória. O homem não tem nenhuma participação exceto a de ouvir e aceitar com fé. A promessa e a fé são o conteúdo do pacto da graça que agora é estabelecido para o homem, que revela o caminho para a casa de Deus a essa criatura caída e perdida, e dá acesso à salvação eterna. [...] Assim como era no primeiro anúncio, no qual Deus fixou a inimizade, começou a luta e prometeu a vitória, Deus se mantém o primeiro e o último em todas as dispensações[7] do pacto da graça, seja em Noé, Abraão, Israel ou na igreja do Novo Testamento. Promessa, dom e graça são e permanecem sendo o conteúdo desse pacto. No decorrer do tempo, o seu conteúdo é mais claramente revelado e se torna mais evidente o quão rico é esse pacto. Entretanto, em princípio, tudo já está contido na promessa-mãe. A expressão maior e mais inclusiva da promessa do pacto da graça é: “Eu serei teu Deus e o Deus do teu povo”. (Herman Bavinck)

Por isso o pacto da graça pode permanecer o mesmo ao longo de toda a história da humanidade, porque ele depende inteiramente de Deus. E Deus é imutável e fiel, completamente capaz de realizar o que Ele mesmo estabeleceu. O que temos após Gênesis 3:15 são renovações desse pacto, a revelação de como esse pacto se cumpriria. Primeiro temos os descendentes de Sete, Noé e mais especificamente Abraão. Em Abraão Deus renova o pacto da graça com Isaque e o Messias vem da linhagem de Israel (Jacó).

O pacto da graça é um pacto eterno que se reproduz de geração em geração. O povo pode deixar de andar conforme as diretrizes estabelecidas nesse pacto; Deus pode abandonar seu povo por um tempo, sujeita-los a castigos e julgamento, todavia, Deus não pode violar o seu pacto, porque é um pacto de graça que não depende da conduta dos homens, mas repousa exclusivamente na compaixão de Deus. Por trás do pacto da graça, como bem afirmou Bavinck, repousa a soberana e onipotente vontade de Deus, que por meio de Jesus, garante o triunfo do reino de Deus sobre todo o poder do pecado.

 

Conclusão

Na plenitude dos tempos a semente da mulher nasceu, pisou a cabeça da serpente, derrotando assim o poder do pecado e da morte. A semente da mulher é o primogênito dentre os mortos, o primeiro ser humano a experimentar a ressurreição. Essa é a esperança da nossa salvação, a ressurreição dos mortos. A vitória completa sobre a morte, por meio do Pacto da Graça. A aliança eterna entre Deus e os seres humanos.

A semente da mulher, o Messias, Jesus Cristo, o autor e consumador da nossa fé, voltará para governar as nações e restaurar a terra. À Ele toda glória, pelos séculos dos séculos. Maranata.

 



[1] Devido à Teologia dispensacionalista que se espalhou com muita rapidez em solo brasileiro. Essa tradição teológica teve início no final do século XX.

[2] A teologia pactual tem raízes na tradição reformado do século XVI e XVII, é fundamento hermenêutico de muitas igrejas Batistas e Presbiterianas.

[3] E assim, satisfazer a vontade do Pai.

[4] Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento, editora Cultura Cristã, Geerhardus Vos (Cap. 2).

[5] Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento, editora Cultura Cristã, Geerhardus Vos (Cap. 1).

[6] 1) Mandato Social; 2) Mandato Cultural; 3) Mandato Espiritual.

[7] É válido ressaltar que Bavinck não utiliza aqui o termo como os dispensacionalistas do século XX, ele está há uma século antes. O termo dispensação é usado simplesmente como período de tempo.


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