terça-feira, 23 de abril de 2024

A Cultura do Lamento

 

O lamento não só é um ato de autoexpressão ou de exorcizar a dor: ele nos forma e cura. Os Salmos expressam cada emoção humana, mas, recitados vez após outra, nunca nos deixam simplesmente como estávamos. Eles são um remédio forte. Eles nos mudam. A transformação efetuada não é converter nossa tristeza em felicidade; eles não pegam pessoas tristes e lhes tornam irritantemente sorridentes e otimistas. […] Pelo contrário, eles firmam nossa visão no amor de Deus por nós e nos ensinam a localizar a nossa dor e anseio no drama eterno de Deus. Eles nos formam para ser um povo que pode manter as profundezas de nossa dor com total sinceridade, ao mesmo tempo em que nos mantemos firmes nas promessas de Deus.

(Tish Warren – Oração da noite)


Geinene Carson

Quando falamos sobre lamento e tristeza é um tópico que muitas vezes evitamos, pois contraria a cultura na qual estamos inseridos. Uma cultura que prega a felicidade em todos os momentos e o prazer a cima de tudo. Quando nos deparamos com as Escrituras e a narrativa bíblica, percebemos que o lamento e a tristeza fazem parte das orações dos santos. O choro e a dor fazem parte do Deus ao qual adoramos e dizemos conhecer. Ele é um Deus que sofre desde que a humanidade caiu e o pecado entrou em nossa história. Há pelo menos duas razões pelas quais o lamento e a tristeza são importantes na vida cristã, a primeira é que por meio deles conhecemos a Deus de forma completa, a segunda é que mais do caráter de Cristo é formado em nós.

Richard Foster escreveu: “Hoje o coração de Deus é uma ferida aberta de amor”. Deus sofre pelos povos e pessoas que não o conhecem, pelos filhos que viraram as costas para a comunhão e a mesa. O Eterno é aquele que entregou parte de si para ser rasgado e moído por nossas transgressões e pecados, mas a cima de tudo glorificar Seu próprio nome cumprindo Seu plano eterno de tabernacular em perfeita união com a humanidade. Ele é o Deus, o qual possui aflições que ainda precisam ser vividas e partilhadas por seus amigos. Ser amigo de Jesus e estar em plena comunhão com Ele, partilhar de suas aflições e dores[1].

 

As diversas formas de Lamento

A nossa vida ordinária[2] é uma constatação do quão real é a narrativa bíblica, podemos enxergar a mesma mistura de emoções e sentimentos experimentados pelos personagens bíblicos nas diversas estações de suas vidas. Temos o exemplo de Davi, no Salmo 51 que lamenta por seu pecado e sua infidelidade ao Senhor. Temos o lamento e desespero de Ana por não ter filhos, em I Samuel 1, transformados em oração e súplica. Jó lamentou e chorou a intensa dor de muitas perdas de uma só vez. Vemos o lamento de Daniel em oração por Israel, que experimentava o amargor do exílio. No livro de Esdras vamos observar a mistura de choro com gritos de alegria, quando o templo é reconstruído.

Em Lucas 15 o pai lamenta pelo filho mais novo que o desprezou e saiu de casa. Jesus chora e lamenta ao olhar Jerusalém, por saber que seu povo não reconheceu que Ele era o Messias. Os judeus e cristãos lamentaram a perseguição e martírio. Vemos Paulo, mesmo em meio a lágrimas e sofrimento, se alegrando em suas prisões e suplícios. Ao abrirmos o livro de Salmos vamos perceber que esse livro tão antigo de orações e louvores, fizeram parte das orações e lamentos do povo de Deus no decorrer dos séculos – Antigo e Novo Testamento, Igreja ao longo dos séculos. Em muitos casos o lamento e a tristeza foram tamanhas que o autor se sente esquecido pelo próprio Deus (Salmo 13).

A igreja Afegã, Sudanesa, Norte Coreana, Chinesa e de diversas nacionalidades sofrem pela perseguição e o martírio. Sofremos pelas crianças e adolescentes explorados de diversas maneiras. Sofremos por causa de governos corruptos e lideranças não servidoras. Sofremos ao ver trabalhadores que tem suas aposentadorias roubadas, pelo agricultor que não conhece bem seus direitos e não sabe como reivindica-los. Sofremos pelos nosso amados que morrem. Sofremos por nossos próprios pecados, e nossa incapacidade de nos livrar deles. Sofremos pelas marcas que a queda deixou na bonita criação de Deus. E como nossos irmãos e irmãs faziam, precisamos aprender a lamentar de forma correta. Precisamos aprender a transformar o lamento em oração e canto.

 

O Lamento como Luto

Tish Warren em seu livro “Orações da noite”[3] expressa bem o porquê temos dificuldade com o Luto e a dor da perda, ela nos lembra dos processos que o luto exige e de como somos resistentes a eles.

O nosso problema é com o sentimento de tristeza. Vamos fazer praticamente qualquer coisa para evitá-lo. E se precisamos nos sentir tristes, ao menos queremos que nossa tristeza acabe quando já estamos fartos dela. Nós queremos que o luto seja apenas mais uma tarefa na nossa lista; o temporizador da alma vai tocar e poderemos ir para a próxima tarefa. Mas não é assim que o luto funciona. Nós o controlamos tanto quanto controlamos o clima. Não é simplesmente uma atividade intelectual, um reconhecimento cognitivo da perda. Sentir tristeza é o custo de ser vivo emocionalmente. Na verdade, é o custo até da santidade. Os cristãos precisam se permitir ser um povo que lamenta. Faz parte do pacote. […], a não ser que concedamos certo espaço para o luto, não poderemos conhecer as profundezas do amor de Deus, o Deus que cura e retorce a dor, a forma que o luto traz sabedoria, conforto, e até alegria. […] Se não dermos espaço para o luto, ele não irá simplesmente desaparecer. O luto é teimoso. Ele dará um jeito de ser ouvido ou morreremos tentando silenciá-lo. Se não o encararmos diretamente, ele nos comerá pelos cantos, de modos que não são sempre fáceis de reconhecer como luto: explosões de raiva, ansiedade fora do controle, vazio compulsivo, amargura regurgitante e vícios sem fim. O luto é um fantasma que não pode descansar até que seu propósito seja cumprido.

É fato que não fomos projetados para a morte e consequentemente nunca estaremos preparados para lidar com ela. Jesus foi o único ser humano que venceu a morte e a exterminará por completo na consumação dos séculos! Todavia, não podemos ignorá-la enquanto estamos aqui; precisamos viver as dores e processos que a morte tem causado em nossas vidas.

 

Os Salmos – as orações e cantos dos santos de todas as Eras

João Calvino chamou os Salmos de “a anatomia de todas as partes da alma”. Ele disse que não há emoção humana que “qualquer um encontre em si cuja imagem não seja refletida neste espelho. Todos os lutos, tristezas, medos, enganos, esperanças, cuidados, ansiedade, em suma, todas as emoções perturbadoras com as quais as mentes dos homens acabam se agitando, o Espírito Santo retratou com exatidão aqui. Os Salmos são dramáticos. E a vida — mesmo a vida ordinária — é dramática, encharcada de significado, cheia de gloriosa beleza e profunda dor. (Tish Warren)

Vejamos um exemplo na prática de como os salmos nos ensinam a lamentar de forma correta:

Até quando te esquecerás de mim, SENHOR? Para sempre? Até quando esconderás de mim o teu rosto? Até quando consultarei com a minha alma, tendo tristeza no meu coração cada dia? Até quando se exaltará sobre mim o meu inimigo?

(Salmo 13:1-2)

Quem nunca se sentiu assim? A dor e o sofrimento, em alguns dias, parecem não ter fim. Esses momentos tentam nos fazer esquecer de que nossa vida já esteve repleta de alegria e paz. E o ensino do salmista é o clamor ao Senhor por iluminação e graça:

Atende-me, ouve-me, ó Senhor meu Deus; ilumina os meus olhos para que eu não adormeça na morte; Para que o meu inimigo não diga: Prevaleci contra ele; e os meus adversários não se alegrem, vindo eu a vacilar.

(Salmo 13:3-4)

 Ele finaliza o salmo com palavras de adoração e confiança no caráter imutável de Deus. Talvez sejam assustadores os versos finais, mas, sua reação à dor e ao sofrimento é a composição de cânticos, um novo cântico para a estação do lamento. A Mesmo em meio a dor e ao luto, o salmista vê a bondade de Deus.

Mas eu confio na tua benignidade; na tua salvação se alegrará o meu coração. Cantarei ao Senhor, porquanto me tem feito muito bem.

(Salmo 13:5-6)

Agostinho via os Salmos como “a forma de Deus remodelar nossos desejos e percepções para que aprendêssemos a lamentar as coisas certas e nos regozijar com as coisas certas.” O que precisamos entender é que nossas emoções são boas, elas foram criadas por Deus para a Sua glória. Todavia, o que acontece em diversos momentos, é que nossas emoções tomam a direção errada – egocentrismo. Temos o habito de fazer tudo girar em torno de nós mesmos, e como podemos ver o problema não são nossas emoções, mas nosso coração. É exatamente nesse ponto que os Salmos remodelam nossos desejos e percepções. Eles nos ensinam a olhar para a pessoa certa, Deus!

O lamento é uma expressão de tristeza. Aprender a lamentar é aprender a chorar. Mas é mais do que isso. Nos salmos de lamento, o salmista cobra as promessas de Deus para o próprio Deus. […] É melhor vir a Deus com palavras duras do que continuar longe dele, nunca verbalizando nossas dúvidas e frustrações. Melhor se irritar com o Criador do que fumegar em devoções polidas. Deus não repreendeu o salmista. Ao longo dos Salmos, ele nos incentiva a falar com ele sem filtros. Contudo, para deixar as coisas mais difíceis, a maior parte de nós não só vive numa cultura que se inoculou contra o lamento, como também vive numa cultura em que é fácil presumir que sabemos mais do que Deus.

(Tish Warren)

 

Conclusão

O lamento é um forma de participarmos do coração de Jesus, como Tomé. Talvez nossa reação ao olharmos para a atitude de Tomé é julgá-lo como incrédulo, mas esquecemos de olhar qual foi a resposta de Jesus deu a esse discípulo: “Toque e creia!”. Talvez teremos passar por situações de dor e lamento, para que como Jó contemplemos: “Antes eu te conhecia de ouvir falar, mas agora os meus olhos de veem”[4]. A glória de todo o sofrimento e dor é ter olhos para ver Aquele que está assentado no trono, é de que o lamento não é para sempre, pois um dia todas as nossas lágrimas serão enxugadas[5]. Nós não teremos lágrimas para lamentar na Nova Jerusalém, por isso, louvado seja o Senhor pelo privilégio de derramarmos nossas lágrimas aqui e ver tudo cooperando para nosso bem.

A pintura “A bird’s simple song” de Geinene Carson[6] – exposta nessa postagem – é a representação de um canário, o pássaro que é capaz de compor novos sons (uma nova canção) em diferentes estações do ano. É uma analogia preciosa de como os Salmos podem nos ensinar a cantar novos cânticos ao nosso Deus, nas diferentes estações da nossa vida. Existe uma canção para ser cantada em meio às prisões[7], dores, lutos e dessabores. A Bíblia nos convida a cultivarmos uma comunidade que aprendeu a lamentar!



[1] Colossenses 1:24: Regozijo-me agora no que padeço por vós, e na minha carne cumpro o resto das aflições de Cristo, pelo seu corpo, que é a igreja;

[2] Entenda ordinária, como cotidiana, rotineira.

[3] Você pode comprar em: https://www.amazon.com.br/Ora%C3%A7%C3%A3o-noite-Tish-Warren/dp/6556891983

[4] Jó 42:5

[5] Apocalipse 21:4

[6] Contrary to what one might think, a bird’s song is anything but simple; hence, the touch of sarcasm in the title. In the midst of my research on neuro-genesis, I came across a most interesting scientific discovery of the songbird’s brain, specifically the canary, which has been proven to possess the unique ability to regenerate neural pathways when learning new seasonal songs. If even birds were created with this amazing ability, what about us? Can we not also learn new songs for new seasons? / Ao contrário do que se possa pensar, o canto de um pássaro não é nada simples; daí o toque de sarcasmo no título. No meio da minha pesquisa sobre neurogénese, deparei-me com uma descoberta científica muito interessante do cérebro dos pássaros canoros, especificamente do canário, que demonstrou possuir a capacidade única de regenerar vias neurais ao aprender novas canções sazonais. Se até os pássaros foram criados com essa habilidade incrível, e nós? Não podemos também aprender novas músicas para novas temporadas?

[7] Paulo e Silas (Atos 16:16-34)