terça-feira, 21 de dezembro de 2021

As mulheres da genealogia de Jesus


Um menino nasceu
Como um filho se nos deu
Ele é o próprio Deus
E vive em mim
Debaixo de suas asas
Eu me escondi

(Rodolfo Abrantes)


Uma das partes que os leitores da Bíblia normalmente pulam – ou leem de maneira rápida – na hora de sua leitura cronológica, são as genealogias. Principalmente aqueles leitores que estão iniciando sua caminhada de estudo e aprofundamento nas escrituras. A maior parte de nós não entende muito bem o porquê de tantas especificações de quem é filho de quem, de que fulano gerou ciclano. Porque essas partes são consideradas inspiradas por Deus como as narrativas e profecias?

Quando vamos interpretar um texto bíblico, o que precisamos considerar como princípio hermenêutico (de interpretação) é que há muitas camadas, como uma cebola, e para uma melhor compreensão cada uma delas pode ser explorada dentro do estudo bíblico. A primeira camada que podemos considerar, dentro dos textos das genealogias, é a histórico-social do povo judeu.  As genealogias estão na Bíblia porque elas possuem uma importância especial para o povo judeu; como para os demais povos de origem semítica e oriental. Saber suas origens era um requisito importante para que a cultura e tradição não morressem, principalmente quando trata-se de um povo que viveu diversos períodos de exílio, dispersão e extermínio.

Outro motivo importante, como cristãos, que podemos observar a respeito das genealogias, é que elas foram de suma importância para traçar a linhagem do Messias. As genealogias são de, certa forma, meios de prova das origens humanas de Jesus, um judeu, descendente de Judá, descendente de Davi. E é exatamente dentro dessa linhagem que toda a narrativa bíblica é desenvolvida.

Outra particularidade interessante nas genealogias é que normalmente elas não citam o nome das mulheres, por se tratar de uma cultura patrilinear (a linhagem e o nome da família eram transmitidos pelo pai de família). Mas, logo na abertura do primeiro evangelho, seu autor, fez questão de citar cinco mulheres que entraram para a história da redenção. Cinco mulheres que tiveram histórias controversas e reputações duvidosas.

 

E Judá gerou, de Tamar, a Perez e a Zerá; e Perez gerou a Esrom; e Esrom gerou a Arão; [...] E Salmom gerou, de Raabe, a Boaz; e Boaz gerou de Rute a Obede; e Obede gerou a Jessé; E Jessé gerou ao rei Davi; e o rei Davi gerou a Salomão da que foi mulher de Urias. [...]E Jacó gerou a José, marido de Maria, da qual nasceu JESUS, que se chama o Cristo.

(Mateus 1:3, 5-6, 16)

 

Tamar

A história de Tamar é bem conturbada, se não entendermos bem o contexto em que as mulheres estavam inseridas naquela época vamos julgar sua atitude de maneira precipitada e mais uma vez condená-la, como fez seu sogro e sua comunidade. Os acontecimentos estão narrados em Gênesis 38.

Segundo os relatos, Judá sai de casa e vai morar na região de Adulão, uma cidade importante dos cananeus, ali ele casa-se com uma mulher cananeia e juntos geram três filhos: Er, Onã e Selá. Quando Er estava na idade de se casar, Judá negocia o casamento do mesmo com Tamar. É importante ressaltar que as mulheres eram criadas para serem esposas, e teriam um futuro garantido por meio dos filhos que gerassem. A outra via que muitas mulheres recorriam, sem ter outras opções, era a prostituição, como profissão – fosse em um bordel ou nos templos.

O texto de Gênesis relata que Er, esposo de Tamar era mau, por isso Deus o matou. Como Er morreu sem gerar filhos, segundo a lei do levirato[1], seu irmão deveria receber a viúva como esposa e gerar um filho que herdaria no lugar do falecido. Onã recebe Tamar como esposa, mas não quer dar um herdeiro para seu irmão. Isso, aos olhos de Deus, é uma atitude má, portanto, Onã também morre sem gerar filhos.

Ante a isso temos Tamar, viúva duas vezes. Provavelmente muitos a olharam como a responsável pela morte dos maridos, uma mulher amaldiçoada. Segundo o costume Tamar deveria casar-se novamente com um dos filhos de Judá, dar continuidade à linhagem de sua família e ser amparada por esse clã. Todavia, Judá decide não dar Selá em casamento a Tamar e a manda de volta para a casa de seu pai. O status social dessa jovem mudaria para pior, uma mulher repudiada.

O que levanta questionamentos e acusações por parte dos leitores é o que vem a seguir, Tamar veste-se como prostituta cultual e se deita com seu sogro. Muitos falam: “Ah! Ela enganou Judá! Ela mentiu! E mais, se vestiu como uma prostituta, que absurdo! Como Deus pôde escolhe-la para entrar na linhagem do Messias?”. Mas, poucos perguntam: “Porque ela se vestiu como prostituta (cultual, diga-se de passagem. Aquelas que deitavam-se com os frequentadores de templos pagãos.)? Será que o sr. Judá tinha o hábito de frequentar bordeis ou templos pagãos?” ou “O que aconteceria com uma jovem viúva repudiada na época de Tamar?”.

Não foi em vão que no momento da condenação da “adúltera / prostituta”, Judá declarou: “Mais justa é ela do que eu!”. Deus transformou os frutos de um incesto nas bases da genealogia do redentor da humanidade. Deus redimiu a história de Tamar, uma cananeia, através de Perez, o fio escarlate que percorre toda a narrativa bíblica.

 

Raabe

A prostituta. Esse é título pelo qual os escritores bíblicos fazem menção de Raabe. Ela é mencionada na Bíblia mais vezes que as outras mulheres aqui descritas. No Novo Testamento, além da genealogia de Jesus, ela é citada por Tiago, em sua carta, e pelo autor de Hebreus[2]. Ambos fazem menção de Raabe como exemplo de fé.

A história de Raabe está em Josué 2, momento em que o povo de Israel está diante da terra prometida (Canaã) para conquista-la. A primeira cidade na lista é Jerico, a cidade de Raabe. Segundo o relato, ela escode os espias israelitas no terraço de sua casa. No momento em que os espias estão para ir embora, Raabe declara sua fé ao Deus de Israel e sela seu destino na eternidade. O fio escarlate pendurado na janela de uma prostituta salvou a humanidade de seus pecados e corrupções. E mais uma cananeia, gentia, entra para a linhagem do Messias.

 

Rute

A moabita. Além das citações em genealogias, Rute teve sua história contada em um livro que carrega seu nome. Esse livro é lido pelos judeus na Festa das Semanas, até os dias de hoje. É sabido que o objetivo imediato do livro de Rute era relatar a respeito da linhagem do rei Davi, todavia, vemos Deus revelando o teor da redenção na história de Rute e Noemi. O parente próximo que resgata uma família sem herdeiros. O parente próximo que se fez carne e habitou entre nós cheio de graça e verdade.

Moabe era um povo descendente de Ló, ou seja, eram parentes do povo de Israel – descendentes de Abraão. Todavia, conforme a narrativa do Pentateuco, esses dois povos tornaram-se inimigos ferrenhos. Um estar no território do outro era sinônimo de estranheza e muitas vezes desprezo. A narrativa relata a viuvez de três mulheres, Noemi, Rute e Orfa. Noemi era a portadora da promessa, e Rute torna-se participante a partir do momento em que faz aliança com sua sogra.

Mais uma vez temos uma viúva, estrangeira, vindo se refugiar debaixo das asas do Deus de Israel. Muitos romantizam a história de Rute e Boaz, entretanto, o que percebemos no texto bíblico é uma jovem que abre mão de sua vida, para honrar sua sogra. Ela se dispõe a se casar com alguém que não conhece para dar continuidade à família de Noemi, que não poderia mais gerar filhos. Rute entregou sua sorte completamente ao Senhor. Ela não tinha ideia do que estava por vir, sua atitude foi consequência da afeição que sentia por Noemi.

Deus usou uma estrangeira para dar continuidade à história da redenção. Deus trouxe mais uma viúva, uma parcela rejeitada na sociedade, para a linhagem do Messias.

 

Batseba

A história de Batseba (Batsheva) está relatada em II Samuel 11. Essa parte da Bíblia normalmente é lida com constrangimento, posto que, trata-se do adultério cometido pelo maior rei de Israel. O pecado daquele que foi chamado de “Homem segundo o coração de Deus”.

Alguns filmes e novelas produzidos, normalmente, romantizam a relação de Davi e Batseba, como se houve um tempo de flerte e enamorar entre os dois. Todavia, o que o texto nos apresenta é uma situação bem diferente. Essa mulher era casada e provavelmente amava seu marido. O texto fala que ela estava se lavando fora de sua casa, pois tinha acabado de sair do seu período menstrual. Ela não poderia tomar banho dentro de casa porque as leis[3] rituais a consideravam cerimonialmente impura, portanto o banho de purificação deveria ser fora, para não contaminar ninguém.

Foi nesse momento que Davi viu e desejou a mulher de Urias. Com o poder que ele tinha, simplesmente mandou trazer Batseba para deitar-se com ela. Reis não podiam ser questionados ou ter sua vontade contrariada, caso acontecesse por parte de algum súdito, a morte era a sentença. No caso das mulheres a situação era um pouco mais complicada.

O texto nos conta que Batseba ficou grávida e avisa Davi. Segundo a narrativa, percebemos que Davi tenta esconder seu pecado de todas as maneiras, a princípio ele tenta forjar a paternidade daquela criança, não tendo êxito ele manda matar Urias e rapidamente faz de Batseba sua esposa. O verso 26 mostra que ela chorou (lamentou) pela morte de seu senhor (marido).

Deus intervém de modo sobrenatural na história dessa mulher; aquela que foi chamada adúltera entra no fio escarlate da história da redenção. Aquela que foi humilhada e teve seu marido tirado de si foi redimida através dos filhos que gerou.

 

Maria

A jovem de Nazaré. Maria, como as outras mulheres da linhagem messiânica que a precederam, sofreu estigmas que sua época trazia. O primeiro era a respeito da cidade à qual pertencia. Essa era uma região da Galileia pouco prestigiada no período que precedia a chegada de Jesus. Os judeus que viviam na região da Galileia eram vistos como judeus de segunda categoria. A Galileia era chamada de região dos gentios, judeus que não eram “puro sangue”. Consequentemente Jesus, sua família e discípulos foram vistos assim.

O segundo estigma enfrentado por Maria, foi a visita de Gabriel no período em que ela estava noiva de José. Engravidar antes do casamento era situação digna de apedrejamento segundo a lei. Não temos detalhes de tudo que essa serva do Senhor enfrentou durante o período em que ficou grávida do Espírito Santo, até José entender o propósito de Deus em todos esses acontecimentos, mas podemos imaginar sua aflição.

A mais desprezada das mulheres foi chamada Bem-aventurada. A mulher de Nazaré achou graça aos olhos do Senhor deu a luz àquele que pisou a cabeça da serpente!

 

A semente da mulher

E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.

(Gênesis 3:15)

Muitos afirmam que o pecado entrou no mundo por meio da mulher. A afirmação de culpa e responsabilidade da queda foram estigmas enfrentados no passado pelas mulheres, e continua presente na fala de muitos nos dias de hoje. Todavia, quando estamos diante do texto bíblico e o encaramos de maneira honesta, observamos quão fascinante Deus é. Logo após a queda, e toda a situação de acusação e incapacidade de assumir responsabilidades, vemos Deus deixar uma promessa de redenção. Deus, em sua soberania e presciência sabia de todos esses estigmas que as mulheres enfrentariam, e sua declaração foi a seguinte: “Você foi enganada, pecou, e trouxe maldição para a terra; mas através de você, da sua semente, a terra será novamente abençoada e os seres humanos serão redimidos![4]

Por meio de mulheres violentadas, prostituídas e adulteradas, Deus fecundou a salvação; Deus redimiu a humanidade de suas violências, prostituições, adultérios e todas as marcas nefastas que o pecado deixou nos seres humanos e na terra. Deus efetuou seu plano de redenção por meio de mulheres de reputação duvidosa. Ele é o Deus que nos vê! Ele é o Deus que sonda mente e corações. Ele é o Deus que está em missão e está totalmente comprometido com Sua vontade!

 

Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz.

Do aumento deste principado e da paz não haverá fim, sobre o trono de Davi e no seu reino, para o firmar e o fortificar com juízo e com justiça, desde agora e para sempre; o zelo do Senhor dos Exércitos fará isto.

(Isaías 9:6,7)



[1] Deuteronômio 25:5-9

[2] Hebreus 11:31 / Tiago 2:25

[3] Levítico 15:19-30

[4] Parafraseando Gênesis 3:15, 12:3 e I Timóteo 2:14


sábado, 20 de novembro de 2021

Terceirizando nossa espiritualidade


Mais perto do monte
Mais perto da face
Me espanto com o peso da Tua glória
Mais perto da glória
É mais perto da morte
O medo quer me parar
Então me tira o medo
Que me faz dizer
Moisés, suba em meu lugar

Me faz entender [...]

(É tudo sobre você – Morada)

 

A palavra terceirização é muito usada no contexto empresarial e estatal, todavia é possível trazê-la para o contexto teológico da nossa relação com o Senhor. Terceirizar é contratar um terceiro para realizar um serviço que não é a atividade principal de uma empresa. No caso de responsabilidades que temos em nosso dia a dia para com nossa família, amigos e parentes, podemos dizer que fazemos isso também, em menor escala, transferimos certas responsabilidades para outras pessoas. Por exemplo, a limpeza de nossa casa, as atividades da cozinha e até mesmo o cuidado com nossos filhos. São relações que normalmente transferimos para outras pessoas. Estamos tão acostumados a fazer isso, que muitas vezes fazemos o mesmo com Deus.

Outro motivo que influenciou fortemente colocarmos mediadores em nossa relação com Deus foi devido a um processo que se intensificou em um período da Igreja que chamamos de clericalismo. A existência de um clero constituído, como detentores do saber bíblico, considerados responsáveis pelo culto ao Senhor e pelo perdão de pecados dos leigos. Quando olhamos esse período da história nos deparamos simplesmente com uma repetição cíclica do que havia acontecido no passado, no período da aliança mosaica. Ao lermos as escrituras percebemos, de forma clara, a vontade perfeita de Deus para com seu povo, e ao mesmo tempo os equívocos cometidos por nós humanos caídos.

 

Um reino de sacerdotes

Desde o início da narrativa bíblica percebemos a vontade de Deus de ter filhos à sua imagem e semelhança, um reino de sacerdotes; seres que seriam plenos em adoração e governo. Essa vontade revelada em Gênesis é novamente mostrada ao povo de Israel, justamente no momento em que Deus apresenta aos descendentes de Abraão sua aliança, no Sinai:

Agora, pois, se ouvirem atentamente a minha voz e guardarem a minha aliança, vocês serão a minha propriedade peculiar dentre todos os povos. Porque toda a terra é minha, e vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.” São estas as palavras que você falará aos filhos de Israel.

(Êxodo 19:5,6)

Moisés é levantado por Deus para tirar o povo de Israel do Egito. Deus mostra seu grande poder e provisão durante todo esse processo, não é em vão que as traduções mais antigas utilizam o termo: “Com mão forte / braço forte... te tirei do Egito”. Toda a trajetória relatada nos 18 primeiros capítulos de Êxodo – a passagem pelo Mar Vermelho, as águas de Mara, o pão que cai do céu e alimenta todo o povo, as codornizes, a água da rocha que sacia a sede de Israel, a vitória sobre Amaleque – mostra como Deus desejava uma nação santa (separada das outras), um povo para si, que o representasse em imagem e governo.

Essa expressão “Um reino de sacerdotes” é repetida pelo apóstolo Pedro em sua carta, se referindo à Igreja, como também na conclusão da narrativa bíblica, em Apocalipse; João vê o reino de sacerdotes, todos aqueles que foram redimidos pelo Cordeiro. O propósito eterno de Deus de ter um povo exclusivo para si vai se cumprir:

Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; Vós, que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo de Deus; que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia. (1 Pedro 2:9,10)

E nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai; a ele glória e poder para todo o sempre. Amém.(Apocalipse 1:6)

Digno és de tomar o livro, e de abrir os seus selos; porque foste morto, e com o teu sangue nos compraste para Deus de toda a tribo, e língua, e povo, e nação; E para o nosso Deus nos fizeste reis e sacerdotes; e reinaremos sobre a terra.

(Apocalipse 5:9,10)

Uma nação de ministros que pode se relacionar diretamente com Deus por meio do cordeiro, Jesus. Um reino de sacerdotes fala de relacionamento direto com Deus, com apenas a mediação do próprio Deus na pessoa do Filho, Jesus Cristo. Essa foi a proposta feita por Deus ao povo de Israel, logo no início de sua constituição como nação.  

 

Terceirizar nossa espiritualidade é uma consequência do medo

Se temos medo é porque não conhecemos a pessoa com quem estamos nos relacionando. O apóstolo João afirma que o medo vem porque não experimentamos plenamente o amor de Deus (I João 4:18), ou seja não conhecemos o Deus da bíblia. Às vezes você pode pensar: “Ah Mayara, mas o Deus do Antigo Testamento parece tão bravo e irado, como não ficar com medo? O próprio texto de Êxodo 19 mostra como Deus deixa claro que não queria que os israelitas se aproximassem do monte Sinai!”. É um grande equívoco pensar que existem dois deuses na Bíblia, um irado (AT) e um gracioso (NT). O ponto chave é que tanto a santidade e justiça são partes do caráter de Deus, quanto bondade e graça. Se fizermos uma leitura rápida desses textos podemos realmente chegar a essa conclusão de que Deus não queria proximidade.

Todavia, vemos muitas pessoas no Antigo Testamento se aproximando de Deus e buscando conhecê-Lo, e em todos esses episódios vemos Deus os recebendo e aceitando sua adoração. Samuel era da tribo de Efraim e dormia ao lado da Arca da Aliança[1]. Davi era da tribo de Judá e dançou na presença da Arca, vestindo uma túnica sacerdotal. E por toda sua vida experimentou a graça de Deus (I Cr 21:13). Temos também o exemplo daqueles que morreram fuminados (Uzá – II Samuel 6:7), ou sofreram consequências terríveis por infringirem as leis estabelecidas para o culto ao Senhor, como o rei Uzias (II Crônicas 26:16).

A vontade de Deus era que a nação toda de Israel fosse sacerdotal, portanto as preparações e restrições estabelecidas pelo livro de Levítico (que para muitos é um livro chato e longo) seria direcionada para todo o Israel, não somente para a tribo de Levi. O estabelecimento da tribo de Levi, como tribo sacerdotal – representantes de Israel diante de Deus – se deu após a rejeição do povo de se relacionarem diretamente com Deus e especificamente após o episódio do Bezerro de Ouro (Êxodo 32). Êxodo traz de modo muito claro a disposição de Deus em se relacionar com os seres humanos, e Levítico mostra que esse relacionamento não é de qualquer jeito. Estamos nos relacionando com um Deus santo, que é fogo consumidor.

 

Terceirizar nossa espiritualidade nos mantém distantes de Deus

Terceirizar nossa espiritualidade é colocar mediadores, além de Cristo, em nosso relacionamento com Deus. Isso é o que praticamente toda religião faz. Mesmo depois do pecado, a vontade de Deus era de relacionamento direito, por meio do Cordeiro que era sacrificado. Todo Antigo Testamento aponta para Jesus, todos os simbolismos do culto no Tabernáculo[2] e posteriormente no Templo são uma sombra da obra de Jesus na Cruz.

A mentalidade de que o pastor é mais santo que eu e as orações dele vão chegar mais rápido até Deus, advém dessa herança religiosa, a qual ensina a nos relacionarmos com Deus, mas não completamente. Quando trazemos isso para o discipulado de Jesus, é permanecer na multidão, seguir a Jesus sem compromisso. Seria isso possível? Pois é, uma situação arriscada! Todas as vezes que precisamos nos recorrer ao pastor, ou ministros de louvor para experimentarmos mais de Deus é sinal de que nossa espiritualidade está fraca; é sinal de que nosso relacionamento com Deus transformou-se em religião, ou nunca existiu.

Não estou afirmando aqui que não precisamos de um pastor ou igreja local, ou mesmo de um irmão mais velho na fé para andar e orar junto. Nada disso! Estou dizendo que sem uma vida de relacionamento real e diário com Deus; uma consciência de que o véu[3] se rasgou e tenho acesso a qualquer momento (por meio do Cordeiro – Jesus), em qualquer lugar à presença de Deus, não suportaremos os momentos de crise, dor e perseguição. Essa pandemia, mais do que nunca, mostrou isso!

 

Terceirizar nossa espiritualidade é sinônimo de amor à própria vida

Moisés fazia parte daquela geração, ele tinha menos pecado que aquele povo? Não! No momento em que o povo ficou com medo e se recusou a subir ao monte o que Moisés falou? (Êxodo 20:20) “Não tenham medo!”. Moisés não teve medo de entrar na presença de Deus, ele sabia da santidade e glória de Deus, ele sabia que não era de qualquer jeito, que existia a maneira de se portar diante do Eterno, com reverência e temor. Todavia, ele perseverou em conhecer ao Senhor, arriscando a própria vida e assim ele experimentou da bondade de Deus (Êxodo 34:13 e 19).

Davi ousou construir um tabernáculo de adoração – modelo 24/7, vinte e quatro horas, sete dias da semana. Esse não era o modelo mosaico, com as separações em Átrio, Lugar Santo e Santíssimo, mas Deus aprovou. Davi foi ousado em se relacionar com Deus, porque ele tinha sede de Deus. Ele não estava com medo da morte, ele queria a presença! (II Samuel 6:12-15 e 17). Quando abrimos o livro de Apocalipse percebemos esse mesmo modelo de adoração diante do trono de Deus – os Seres Viventes, os 24 anciãos e o anjos adorando sem parar, declarando a santidade do Eterno – Apocalipse 4:8. Parece que Davi teve uma visão celestial, como Moisés.

Jesus falou a respeito de amarmos a nossa própria vida (João 12:25). A autopreservação é um caminho de morte. Terceirizar nosso relacionamento com Deus por medo de perder essa vida aqui na terra é o meio pelo qual perdemos a verdadeira vida. Amar mais nossa vida do que a presença de Deus, é um ponto para questionarmos se realmente nascemos de novo, se realmente experimentamos da água da vida.

 

Terceirizar nossa espiritualidade nos leva a fabricar ídolos

Fomos projetados para o fascínio. Nosso coração foi criado para se comprometer, adorar algo ou alguém. Se Deus não ocupar esse lugar nas nossas afeições, outra coisa ocupará. Calvino afirmou: “O coração do homem é uma fábrica de ídolos”. O episódio ocorrido em Êxodo 19 e 20, do chamado de Israel para ser uma nação de sacerdotes e de sua recusa, desemboca no Bezerro de Ouro (cap. 32). Os capítulos que estão no meio é o relato de Moisés no monte, durante 40 dias recebendo a lei do Senhor. O local que o povo deveria estar, junto de Moisés!

Aparentemente é mais fácil dizer: “Moisés suba em meu lugar. Fale com Deus no meu lugar, e faremos o que você disser!”. Ah meus queridos, isso é um grande engano! Se nosso coração não estiver completamente comprometido com uma pessoa, se nossas afeições não estiverem envolvidas a ponto de esquecermos de nós mesmo e nossos desejos tortos, não faremos nada do que nos comprometemos religiosamente fazer.

Todas as vezes que deixamos de praticar a presença de Deus, todas as vezes que outra pessoa sobe em nosso lugar, fabricamos ídolos. Ídolos podem parecer coisas legitimas, não é simplesmente uma estátua que você tem na mão, mas aquilo que investimos nosso tempo, dinheiro e afeições.

 

Que possamos subir ao monte, conscientes de que o véu foi rasgado e podemos nos relacionar com o Eterno, por meio do Cordeiro! Que possamos desejar estar com o Senhor independente do que isso possa nos custar!



[1] Uma ressalva importante: A Arca da Aliança era o símbolo da suprema presença de Deus no Tabernáculo (Moisés), o período em Siló (Juízes e Samuel), e no Templo (a partir do período de Salomão). Ela ficava no lugar mais santo, o lugar santíssimo, local em que apenas o Sumo Sacerdote (descendentes de Arão) poderiam entrar uma vez ao ano.

[2] O tabernáculo era dividido, basicamente, em três partes: Átrio – local onde o sacrifício e a maior parte das atividades do culto acontecia; Lugar Santo – Local em que apenas os sacerdotes poderiam entrar; Santo dos santos – Esse local apenas o Sumo Sacerdote poderia entrar uma vez ao ano, para oferecer o sacrifício anual e fazer a expiação (tirar o pecado do povo).

[3] No tabernáculo e também no templo o Lugar Santo e o Santíssimo eram separados por um véu – um tecido feito de linho fino (Êxodo 26:31). Quando Jesus morreu, os evangelhos relatam que o véu do templo se rasgou de alto a baixo (Marcos 15:38 e Lucas 23:45).

terça-feira, 19 de outubro de 2021

As afeições do nosso coração


Transforma quem eu sou por dentro

Domar os sentimentos que não vem de Ti

Transborda quem eu sou por dentro

E molda os meus afetos e desejos mais profundos

Eu quero te querer ainda mais

Eu quero te querer ainda

Me ensine a te querer ainda mais

 

(Marcelo Sissá e João Manô – Você é aquilo que ama)


 

Quando nos deparamos com as escrituras e os requisitos do discipulado de Jesus, podemos pensar: como são altas essas “exigências”! É muito difícil ser discípulo de Jesus! Será que consigo viver a boa, agradável e perfeita vontade de Deus para minha vida? Quando olhamos para nós mesmo e nos deparamos com os tropeços diários nossa resposta sempre será negativa, e viveremos sempre com o real e o ideal – como sou e como deveria ser.

Todavia, percebemos em toda a história bíblica que o mesmo Deus que estabelece o padrão, nos auxilia, por meio Dele, a forma de alcançarmos esse padrão. É Ele quem cria em nós um Espírito inabalável capaz de resistir as mais violentas tempestades. É Ele quem nos dá o livramento nos momentos de tentação. É Ele quem nos ensina a amá-Lo acima de todos os outros amores. E esse último ponto é o cerne de todas as coisas. As afeições do nosso coração diz quem somos e para onde estamos indo.

Já escrevi isso em outros texto aqui, e provavelmente você deve ter lido ou ouvido outras pessoas falarem a mesma coisa, pois no final das contas é o que a Bíblia nos ensina: O nosso Deus é um Deus relacional! Ele nos criou para essa finalidade, viver em comunidade. Fazer parte de Sua comunidade (a Trindade). E é exatamente por isso que o escritor James A. Smith[1] afirma que não somos porque pensamos, ou compramos, mas somos porque amamos. Somos o que amamos!

 

O imutável amor de Deus

Sabemos quanto Deus nos ama e confiamos em seu amor. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele. À medida que permanecemos em Deus, nosso amor se torna mais perfeito. Assim, teremos confiança no dia do julgamento, pois vivemos como Jesus viveu neste mundo. Esse amor não tem medo, pois o perfeito amor afasta todo medo. Se temos medo, é porque tememos o castigo, e isso mostra que ainda não experimentamos plenamente o amor. Nós amamos porque ele nos amou primeiro.

(I João 4:16-19)

João escreve essa carta afirmando na primeira pessoa do plural: “Nós sabemos... nós confiamos...”, verdades sobre do amor de Deus. Muitos questionam o testemunho de João a respeito de si mesmo, principalmente no seu evangelho, por afirmar ser: “o discípulo a quem Jesus amava...”. Alguns, por esse motivo, o consideram prepotente ou mesmo chegam a dizer: “Mas, esse João se acha eih!”. Mas, a verdade contida no ensino de João é simplesmente: Confie no caráter de Deus. O Deus que servimos é imutável, e o amor é a própria pessoa Dele. Se o amor é Sua essência e se Sua essência é imutável, podemos ter plena confiança de que o amor Dele por nós não muda! Essa é a razão da certeza e da confiança.

João nos ensina a tirar o foco de nós. A questão do amor não é o quanto O amamos, mas o quanto Ele nos ama. Enquanto os olhos do nosso coração não forem abertos para essa verdade, viveremos dia a pós dia patinando no discipulado de Jesus. É por isso que João afirmava: “Eu sou amado!”, ele não dizia que era “o mais amado”, ele simplesmente confiava que era amado. Por quê? Por que Deus mostrou essa verdade por meio de Jesus. Essa foi a experiência que João teve com Jesus, e é essa experiência que ele nos orienta a te.

O medo é sinônimo de não ter experimentado plenamente o amor. Se tememos é porque não confiamos no caráter de Deus, não confiamos que o sacrifício de Jesus foi suficiente! Paulo traz uma poesia profunda e linda a respeito desse amor do Pai por nós:

“Quem nos separará do amor de Cristo? Serão aflições ou calamidades, perseguições ou fome, miséria, perigo ou ameaça de morte? [...] E estou bem convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o que existe hoje nem o que virá no futuro, nem poderes, nem altura nem profundidade, nada, em toda a criação, jamais poderá nos separar do amor de Deus revelado em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Romanos 8:35 e 38-39)

Se esses versos não são suficientes para trazer confiança, à nossa agitada alma, no caráter de Deus, oremos ao Senhor para que os olhos dos nossos corações sejam abertos. Usando ainda alguns versos do apóstolo Paulo, à igreja de Éfeso, podemos concluir que o primeiro passo para crescermos no discipulado de Jesus é estarmos fundamentados / firmados / enraizados no amor – em Sua pessoa e caráter. 

Quando penso em tudo isso, caio de joelhos e oro ao Pai, o Criador de todas as coisas nos céus e na terra. Peço que, da riqueza de sua glória, ele os fortaleça com poder interior por meio de seu Espírito. Então Cristo habitará em seu coração à medida que vocês confiarem nele. Suas raízes se aprofundarão em amor e os manterão fortes.

(Efésios 3:14-17)

 

Alinhando nossos anseios e desejos

Como afirma Smith: “...a ordem de Jesus para que o sigamos é um chamado a alinhar nossos amores e anseios aos dele – querer o que Deus quer, desejar o que Deus deseja, ansiar pelo que Deus anseia e almejar por um mundo onde ele é tudo em todas as coisas.”. Nossa resposta ao discipulado de Jesus é uma resposta de amor àquele que nos amou primeiro.

Segundo esse mesmo autor, o amor é algo desenvolvido por meio do hábito, das nossas liturgias diárias. Portanto, é possível dizer que aprendemos a amar. Parece estranho dizer isso, e contrário ao que a maior parte dos filmes e séries ensinam, mas o amor está completamente relacionado com algo (alguém) que gastamos nossos dias aqui na terra. O amor está relacionado com nosso dinheiro, tempo e hábitos.

O discipulado de Jesus é um convite para reordenarmos nossas afeições e desejos, posto que, estes naturalmente, em detrimento da queda, foram corrompidos e deturpados. Nosso coração e subconsciente são focados e direcionados para outros lugares. É por isso que nossos afetos e comprometimentos do coração precisam ser calibrados.

[...] se o coração é como uma bússola, um dispositivo erótico de orientação, então precisamos calibrar (regularmente) nosso coração, ajustando-o para que esteja apontado para o Criador, nosso norte magnético. É crucial reconhecermos que nossos maiores amores, anseios, desejos e paixões são aprendidos.

(James A. Smith)

Portanto, as disciplinas espirituais ensinadas por Jesus, reavivadas na igreja por meio do movimento metodista[2], sistematizadas e difundidas pela obra clássica de Richard Foster, Celebração da disciplina, são fundamentais nesse processo de reordenamento de nossos afetos. Como também, a interação de modo consciente no culto ao Senhor, por meio dos elementos litúrgicos – louvor, confissão de pecados, exposição das escrituras, ceia do Senhor – são fundamentais no discipulado do nosso coração.

Dentro das disciplinas espirituais, uma prática que tem sido propagada entre os cristãos é o devocional, um tempo diário para meditação nas Escrituras e oração. Um tempo a sós com o Criador. Essa prática é também niveladora no que diz respeito aos nossos amores, ela nos conduz a contemplar a beleza de Deus e direciona nossos afetos à Ele.

Por mais que a tradição possa ter levado muitos de nós a entender tais meios apenas como rituais religiosos, essas liturgias possuem significado profundo e podem redirecionar os comprometimentos do nosso coração, de volta para Deus. O amor do Pai por nós é o meio pelo qual podemos amá-lo de volta! E amá-lo de volta é uma prática diária.

 

Conclusão

Talvez seu Ensino Médio e Graduação tenham sido parecidos com os meus, e tentaram te convencer de que você é aquilo que pensa ou raciocina, por causa da famosa máxima do filósofo Descartes[3]: “Penso, logo existo!”. Talvez os Shoppings e a sociedade de consumo o convenceram que você é aquilo que seu dinheiro pode comprar. Mas, não se engane, a Bíblia e a prática dizem o contrário: “Você é aquilo que ama!”/ Você é aquilo que deseja!

Por maior esforço que os racionalistas fizeram para nos convencer de que somos racionais, cérebros em um corpo; a experiência e o indivíduo provam o contrário. Somos seres que adoram, que veneram; seja uma ideologia de sociedade, seja ao mercado financeiro, seja ao Deus único, seja à natureza, enfim; nosso coração sempre estará comprometido com algum deus. Pois fomos criados para o fascínio, fomos criados para amar!

 

Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti. (Agostinho de Hipona)

 

 



[1] Escritor do livro: Você é aquilo que ama.

[2] Movimento Metodista, liderado pelos irmãos Wesley’s, John e Charles. Foi um período de avivamento experimentado pela Inglaterra no século XVIII.

[3] René Descartes foi um filósofo, físico e matemático francês. Durante a Idade Moderna, também era conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

O Poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza

 

E disse-me: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo.

(2 Coríntios 12:9)

 

 

Algo importante que precisamos observar na narrativa bíblica é a forma como Deus trabalha na história da humanidade, usando aqueles que “não são” para cumprir seu propósito original, a restauração de todas as coisas para o louvor de Sua glória. A Bíblia possui inúmeros exemplos do poder de Deus se aperfeiçoando na fraqueza humana. O caminho da fraqueza, é o caminho pelo qual o nome do Senhor é mais glorificado, para que todo o mérito seja Dele.

Um desses exemplos fascinantes é encontrado no início do segundo livro da Bíblia, o livro de Êxodo. Duas mulheres que eram parteiras das escravas hebréias. Quando observamos a organização social daquela época, é possível percebermos que Sifrá e Puá estavam em uma posição bem inferior na pirâmide social. Elas eram as servas das escravas. Em um português mais esdrúxulo e popular, elas seriam: “O cocô do cavalo do bandido.”

 

O rei do Egito ordenou às parteiras dos hebreus, que se chamavam Sifrá e Puá: "Quando vocês ajudarem as hebréias a dar à luz, verifiquem se é menino. Se for, matem-no; se for menina, deixem-na viver".

Todavia, as parteiras temeram a Deus e não obedeceram às ordens do rei do Egito; deixaram viver os meninos. Então o rei do Egito convocou as parteiras e lhes perguntou: "Por que vocês fizeram isso? Por que deixaram viver os meninos? "

Responderam as parteiras do faraó: "As mulheres hebréias não são como as egípcias. São cheias de vigor e dão à luz antes de chegarem as parteiras".

Deus foi bondoso com as parteiras; e o povo ia se tornando ainda mais numeroso, cada vez mais forte. Visto que as parteiras temeram a Deus, ele concedeu-lhes que tivessem suas próprias famílias.

(Êxodo 1:15-21)

 

O infanticídio como meio de controle populacional não é novidade, nem mesmo nos tempos atuais. Infelizmente, essa era uma realidade praticada por muitos governos da antiguidade. Há dois relatos bíblicos de autoridades estatais que praticaram isso, Faraó (Êxodo 1) e Herodes, o Grande (Mateus 2). Esses atos de crueldade ocorreram em momentos de grande importância para a história da redenção. Aparentemente temos decisões de governos humanos, todavia, o que temos no texto é o contexto de uma guerra cósmica travada. Dentro dessa perspectiva, é visível a resistência dos poderes rebeldes contra a vontade de Deus.

Pelo que é relatado, essas mulheres, além de serem servas das servas, não pareciam ser casadas e muito menos ter filhos – ser casada e ter filhos eram requisitos imprescindíveis para que uma mulher fosse valorizada nos tempos antigos. Não ter filhos era sinônimo de maldição dos deuses. Deus usou essas mulheres, que não tinham nenhuma importância para os homens, afim de preservar seu povo, a linhagem do Messias.

Talvez você pode pensar: “Ah!! Então quer dizer que eu preciso ser pobre, e sem nenhum título ou posição social elevada para ser usado por Deus ou aprovado por Ele?” Não necessariamente. A questão aqui está no que Jesus revelou na exposição do Sermão da Montanha, em Mateus 5:3, os “pobres em espírito”. A melhor tradução para essa expressão seria: “Pobres piedosos”, aqueles que possuem Deus como seu único recurso, ante a situações de opressão e injustiça. A questão é que normalmente os corações encontrados nessa condição, de quebrantamento e humildade coincidem com pessoas socialmente desfavorecidas. Naturalmente rejeitadas e excluídas socialmente. Portanto, essas mulheres, Sifrá e Puá tinham um coração temente a Deus, mesmo vivendo na cidade dos homens[1]. Elas não tinham nenhum poder econômico ou político, a pesar disso, não mostraram nenhum sinal de intimidação com aquele decreto de morte. Essas mulheres foram usadas como canal da benção de Deus. As parteiras das escravas tiveram um papel fundamental na história da redenção.

Talvez você se questione, mas a Bíblia não diz que devemos orar pelas autoridades e honrá-las? Sim, mas há um princípio antes desse: Importa primeiro obedecer a Deus, do que aos homens. Nossa obediência total e incondicional é ao Senhor, todavia, se as leis humanas, contrariam o que foi estabelecido por Deus, podemos – nesse caso – desobedecer aos homens. Segundo Elaine Storkey, Sifrá e Puá estavam assumindo o mesmo tipo de convicção de princípios que ecoou com os mártires ao longo dos tempos.

Segundo o pastor Thimoty Keller, Deus está trabalhando para trazer justiça e salvação nos bastidores das tragédias. A salvação acontece por meio dos fracos! É assim que Deus age nas linhas da história humana. Deus chamou aquelas parteiras para agirem a partir do lugar em que estavam, é o mesmo também para nós hoje! Nosso ponto de partida sempre será a oração por discernimento, persistência e coragem. O temor a Deus levará homens e mulheres a gritarem com ousadia contra as injustiças na cidade dos homens.

 

Significados e associações

O nome Sifrá significa “lindo”;  Puá quer dizer “gritar”. Significados que coincidiram diretamente com o propósito de vida dessas duas mulheres. Parece acaso quando lemos ou pesquisamos a respeito, mas os nomes na Bíblia, em sua maioria estavam relacionados à vocação ou causa daquele personagem. Como também, as mudanças de nome são de extrema importância nas escrituras, pois revelam momentos de mudança no caráter e encontros que trouxeram profundas transformações.

No mesmo contexto que essas mulheres viviam, um tempo depois do plano de Faraó ter falhado, Deus continuou usando mulheres para preservarem o menino que mais tarde seria “O libertador” de Israel, Moisés. Do mesmo modo aconteceu com Jesus. Maria e José, dois judeus comuns, foram usados por Deus para protegerem o Filho de Deus, enquanto este era apenas um bebê. Esse casal comum, estava longe dos holofotes sociais, porque tudo isso fazia parte do propósito de Deus.

 

E, tendo eles se retirado, eis que o anjo do Senhor apareceu a José num sonho, dizendo: Levanta-te, e toma o menino e sua mãe, e foge para o Egito, e demora-te lá até que eu te diga; porque Herodes há de procurar o menino para o matar.

E, levantando-se ele, tomou o menino e sua mãe, de noite, e foi para o Egito.

E esteve lá, até à morte de Herodes [...]

Então Herodes, vendo que tinha sido iludido pelos magos, irritou-se muito, e mandou matar todos os meninos que havia em Belém, e em todos os seus contornos, de dois anos para baixo [...]

(Mateus 2:13-16)

 

A guerra cósmica, dos principados e potestades contra o cumprimento e estabelecimento da vontade de Deus na terra, é uma realidade! Esse é um dos motivos pelo qual Deus trabalha nos bastidores, cumprindo as profecias dadas a seu povo da forma que os eruditos e estudiosos menos esperam. O mistério da fraqueza está relacionada com o que falamos no início do texto, mas também está ligada a essa verdade. Jesus era o descendente de Davi, nascido em Belém, mas seus pais não faziam parte da nobreza, a linhagem do trono havia saído da família de Judá desde o exílio, e se consolidou na era pós-exílica com o domínio Macabeu – dinastia Asmoneia.

Com o domínio romano, a esperança messiânica dos judeus não estava mais no filho de Davi que viria, mas na restauração da dinastia Asmoneia. Interessante essa forma como Deus preparou todo o contexto para despistar e guardar a semente da mulher para o cumprimento de Seu propósito, não é mesmo!? É incrível ver essas múltiplas faces do mistério da fraqueza. Deus derramando graça sobre corações quebrados, movendo seus planos adiante nos bastidores do sofrimento.

 

Conclusão

Ainda restam profecias a respeito do Messias e da consumação do plano de redenção para a humanidade a serem cumpridas. A atuação de Deus será da mesma maneira, usando a fraqueza e os bastidores para o cumprimento de seu plano eterno. Deus continuará usando a perseguição e sofrimento para que Jesus encontre uma noiva madura e preparada para o casamento. Se foi assim durante toda a narrativa bíblica, porque seria diferente no que está por vir!?

Que possamos ser achados fiéis, humildes e mansos diante do Senhor. Para que a graça Dele seja derramada em nossa fraqueza, para o louvor de Sua glória!

 

 



[1] O termo “Cidade dos homens” se refere ao sistema cultural e religioso regido por princípios contrários ao Reino de Deus. A narrativa bíblica nos revela que há o paralelo de duas cidades sendo construídas ao longo da história, Babilônia e a Nova Jerusalém.