Uma
das partes que os leitores da Bíblia normalmente pulam – ou leem de maneira
rápida – na hora de sua leitura cronológica, são as genealogias. Principalmente
aqueles leitores que estão iniciando sua caminhada de estudo e aprofundamento
nas escrituras. A maior parte de nós não entende muito bem o porquê de tantas
especificações de quem é filho de quem, de que fulano gerou ciclano. Porque
essas partes são consideradas inspiradas por Deus como as narrativas e profecias?
Quando
vamos interpretar um texto bíblico, o que precisamos considerar como princípio
hermenêutico (de interpretação) é que há muitas camadas, como uma cebola, e
para uma melhor compreensão cada uma delas pode ser explorada dentro do estudo
bíblico. A primeira camada que podemos considerar, dentro dos textos das
genealogias, é a histórico-social do povo judeu. As genealogias estão na Bíblia porque elas possuem
uma importância especial para o povo judeu; como para os demais povos de origem
semítica e oriental. Saber suas origens era um requisito importante para que a
cultura e tradição não morressem, principalmente quando trata-se de um povo que
viveu diversos períodos de exílio, dispersão e extermínio.
Outro
motivo importante, como cristãos, que podemos observar a respeito das
genealogias, é que elas foram de suma importância para traçar a linhagem do
Messias. As genealogias são de, certa forma, meios de prova das origens humanas
de Jesus, um judeu, descendente de Judá, descendente de Davi. E é exatamente
dentro dessa linhagem que toda a narrativa bíblica é desenvolvida.
Outra
particularidade interessante nas genealogias é que normalmente elas não citam o
nome das mulheres, por se tratar de uma cultura patrilinear (a linhagem e o
nome da família eram transmitidos pelo pai de família). Mas, logo na abertura
do primeiro evangelho, seu autor, fez questão de citar cinco mulheres que
entraram para a história da redenção. Cinco mulheres que tiveram histórias
controversas e reputações duvidosas.
E Judá gerou, de Tamar, a Perez e
a Zerá; e Perez gerou a Esrom; e Esrom gerou a Arão; [...] E Salmom gerou, de
Raabe, a Boaz; e Boaz gerou de Rute a Obede; e Obede gerou a Jessé; E Jessé
gerou ao rei Davi; e o rei Davi gerou a Salomão da que foi mulher de Urias.
[...]E Jacó gerou a José, marido de Maria, da qual nasceu JESUS, que se chama o
Cristo.
(Mateus 1:3, 5-6, 16)
Tamar
A
história de Tamar é bem conturbada, se não entendermos bem o contexto em que as
mulheres estavam inseridas naquela época vamos julgar sua atitude de maneira
precipitada e mais uma vez condená-la, como fez seu sogro e sua comunidade. Os
acontecimentos estão narrados em Gênesis 38.
Segundo
os relatos, Judá sai de casa e vai morar na região de Adulão, uma cidade
importante dos cananeus, ali ele casa-se com uma mulher cananeia e juntos geram
três filhos: Er, Onã e Selá. Quando Er estava na idade de se casar, Judá
negocia o casamento do mesmo com Tamar. É importante ressaltar que as mulheres
eram criadas para serem esposas, e teriam um futuro garantido por meio dos
filhos que gerassem. A outra via que muitas mulheres recorriam, sem ter outras
opções, era a prostituição, como profissão – fosse em um bordel ou nos templos.
O
texto de Gênesis relata que Er, esposo de Tamar era mau, por isso Deus o matou.
Como Er morreu sem gerar filhos, segundo a lei do levirato[1],
seu irmão deveria receber a viúva como esposa e gerar um filho que herdaria no
lugar do falecido. Onã recebe Tamar como esposa, mas não quer dar um herdeiro
para seu irmão. Isso, aos olhos de Deus, é uma atitude má, portanto, Onã também
morre sem gerar filhos.
Ante
a isso temos Tamar, viúva duas vezes. Provavelmente muitos a olharam como a
responsável pela morte dos maridos, uma mulher amaldiçoada. Segundo o costume
Tamar deveria casar-se novamente com um dos filhos de Judá, dar continuidade à
linhagem de sua família e ser amparada por esse clã. Todavia, Judá decide não
dar Selá em casamento a Tamar e a manda de volta para a casa de seu pai. O
status social dessa jovem mudaria para pior, uma mulher repudiada.
O
que levanta questionamentos e acusações por parte dos leitores é o que vem a
seguir, Tamar veste-se como prostituta cultual e se deita com seu sogro. Muitos
falam: “Ah! Ela enganou Judá! Ela mentiu! E mais, se vestiu como uma prostituta,
que absurdo! Como Deus pôde escolhe-la para entrar na linhagem do Messias?”. Mas,
poucos perguntam: “Porque ela se vestiu como prostituta (cultual, diga-se de
passagem. Aquelas que deitavam-se com os frequentadores de templos pagãos.)?
Será que o sr. Judá tinha o hábito de frequentar bordeis ou templos pagãos?” ou
“O que aconteceria com uma jovem viúva repudiada na época de Tamar?”.
Não
foi em vão que no momento da condenação da “adúltera / prostituta”, Judá
declarou: “Mais justa é ela do que eu!”. Deus transformou os frutos de um
incesto nas bases da genealogia do redentor da humanidade. Deus redimiu a
história de Tamar, uma cananeia, através de Perez, o fio escarlate que percorre
toda a narrativa bíblica.
Raabe
A
prostituta. Esse é título pelo qual os escritores bíblicos fazem menção de
Raabe. Ela é mencionada na Bíblia mais vezes que as outras mulheres aqui
descritas. No Novo Testamento, além da genealogia de Jesus, ela é citada por
Tiago, em sua carta, e pelo autor de Hebreus[2].
Ambos fazem menção de Raabe como exemplo de fé.
A
história de Raabe está em Josué 2, momento em que o povo de Israel está diante
da terra prometida (Canaã) para conquista-la. A primeira cidade na lista é
Jerico, a cidade de Raabe. Segundo o relato, ela escode os espias israelitas no
terraço de sua casa. No momento em que os espias estão para ir embora, Raabe
declara sua fé ao Deus de Israel e sela seu destino na eternidade. O fio escarlate
pendurado na janela de uma prostituta salvou a humanidade de seus pecados e
corrupções. E mais uma cananeia, gentia, entra para a linhagem do Messias.
Rute
A
moabita. Além das citações em genealogias, Rute teve sua história contada em um
livro que carrega seu nome. Esse livro é lido pelos judeus na Festa das
Semanas, até os dias de hoje. É sabido que o objetivo imediato do livro de Rute
era relatar a respeito da linhagem do rei Davi, todavia, vemos Deus revelando o
teor da redenção na história de Rute e Noemi. O parente próximo que resgata uma
família sem herdeiros. O parente próximo que se fez carne e habitou entre nós
cheio de graça e verdade.
Moabe
era um povo descendente de Ló, ou seja, eram parentes do povo de Israel –
descendentes de Abraão. Todavia, conforme a narrativa do Pentateuco, esses dois
povos tornaram-se inimigos ferrenhos. Um estar no território do outro era
sinônimo de estranheza e muitas vezes desprezo. A narrativa relata a viuvez de
três mulheres, Noemi, Rute e Orfa. Noemi era a portadora da promessa, e Rute
torna-se participante a partir do momento em que faz aliança com sua sogra.
Mais
uma vez temos uma viúva, estrangeira, vindo se refugiar debaixo das asas do
Deus de Israel. Muitos romantizam a história de Rute e Boaz, entretanto, o que
percebemos no texto bíblico é uma jovem que abre mão de sua vida, para honrar
sua sogra. Ela se dispõe a se casar com alguém que não conhece para dar
continuidade à família de Noemi, que não poderia mais gerar filhos. Rute entregou
sua sorte completamente ao Senhor. Ela não tinha ideia do que estava por vir,
sua atitude foi consequência da afeição que sentia por Noemi.
Deus
usou uma estrangeira para dar continuidade à história da redenção. Deus trouxe mais
uma viúva, uma parcela rejeitada na sociedade, para a linhagem do Messias.
Batseba
A
história de Batseba (Batsheva) está relatada em II Samuel 11. Essa parte da
Bíblia normalmente é lida com constrangimento, posto que, trata-se do adultério
cometido pelo maior rei de Israel. O pecado daquele que foi chamado de “Homem
segundo o coração de Deus”.
Alguns
filmes e novelas produzidos, normalmente, romantizam a relação de Davi e
Batseba, como se houve um tempo de flerte e enamorar entre os dois. Todavia, o
que o texto nos apresenta é uma situação bem diferente. Essa mulher era casada
e provavelmente amava seu marido. O texto fala que ela estava se lavando fora
de sua casa, pois tinha acabado de sair do seu período menstrual. Ela não
poderia tomar banho dentro de casa porque as leis[3]
rituais a consideravam cerimonialmente impura, portanto o banho de purificação
deveria ser fora, para não contaminar ninguém.
Foi
nesse momento que Davi viu e desejou a mulher de Urias. Com o poder que ele
tinha, simplesmente mandou trazer Batseba para deitar-se com ela. Reis não
podiam ser questionados ou ter sua vontade contrariada, caso acontecesse por
parte de algum súdito, a morte era a sentença. No caso das mulheres a situação
era um pouco mais complicada.
O
texto nos conta que Batseba ficou grávida e avisa Davi. Segundo a narrativa,
percebemos que Davi tenta esconder seu pecado de todas as maneiras, a princípio
ele tenta forjar a paternidade daquela criança, não tendo êxito ele manda matar
Urias e rapidamente faz de Batseba sua esposa. O verso 26 mostra que ela chorou
(lamentou) pela morte de seu senhor (marido).
Deus
intervém de modo sobrenatural na história dessa mulher;
aquela que foi chamada adúltera entra no fio escarlate da história da redenção.
Aquela que foi humilhada e teve seu marido tirado de si foi redimida através
dos filhos que gerou.
Maria
A
jovem de Nazaré. Maria, como as outras mulheres da linhagem messiânica que a
precederam, sofreu estigmas que sua época trazia. O primeiro era a respeito da
cidade à qual pertencia. Essa era uma região da Galileia pouco prestigiada no
período que precedia a chegada de Jesus. Os judeus que viviam na região da
Galileia eram vistos como judeus de segunda categoria. A Galileia era chamada
de região dos gentios, judeus que não eram “puro sangue”. Consequentemente
Jesus, sua família e discípulos foram vistos assim.
O
segundo estigma enfrentado por Maria, foi a visita de Gabriel no período em que
ela estava noiva de José. Engravidar antes do casamento era situação digna de
apedrejamento segundo a lei. Não temos detalhes de tudo que essa serva do Senhor
enfrentou durante o período em que ficou grávida do Espírito Santo, até José
entender o propósito de Deus em todos esses acontecimentos, mas podemos
imaginar sua aflição.
A
mais desprezada das mulheres foi chamada Bem-aventurada. A mulher de Nazaré
achou graça aos olhos do Senhor deu a luz àquele que pisou a cabeça da
serpente!
A semente da mulher
E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.
(Gênesis 3:15)
Muitos
afirmam que o pecado entrou no mundo por meio da mulher. A afirmação de culpa e
responsabilidade da queda foram estigmas enfrentados no passado pelas mulheres,
e continua presente na fala de muitos nos dias de hoje. Todavia, quando estamos
diante do texto bíblico e o encaramos de maneira honesta, observamos quão
fascinante Deus é. Logo após a queda, e toda a situação de acusação e
incapacidade de assumir responsabilidades, vemos Deus deixar uma promessa de
redenção. Deus, em sua soberania e presciência sabia de todos esses estigmas
que as mulheres enfrentariam, e sua declaração foi a seguinte: “Você foi
enganada, pecou, e trouxe maldição para a terra; mas através de você, da sua
semente, a terra será novamente abençoada e os seres humanos serão redimidos![4]
Por
meio de mulheres violentadas, prostituídas e adulteradas, Deus fecundou a
salvação; Deus redimiu a humanidade de suas violências, prostituições,
adultérios e todas as marcas nefastas que o pecado deixou nos seres humanos e
na terra. Deus efetuou seu plano de redenção por meio de mulheres de reputação
duvidosa. Ele é o Deus que nos vê! Ele é o Deus que sonda mente e corações. Ele
é o Deus que está em missão e está totalmente comprometido com Sua vontade!
Porque um menino
nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se
chamará o seu nome: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade,
Príncipe da Paz.
Do aumento deste
principado e da paz não haverá fim, sobre o trono de Davi e no seu reino, para
o firmar e o fortificar com juízo e com justiça, desde agora e para sempre; o
zelo do Senhor dos Exércitos fará isto.
(Isaías 9:6,7)