sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Cosmovisão II - Sagrado x Secular


Tu és soberano sobre a terra sobre o céus tu és Senhor, absoluto. 
Tudo que existe acontece tu o sabes muito bem, tu és tremendo. 
(Asaph Borba)








Esse dualismo acompanha a vida cristã por séculos, normalmente nós o conhecemos a partir das costumeiras perguntas: Com o que você trabalha durante a semana? Qual é seu ministério aos domingos / sábados? O que você faz no secular? Você é tempo integral na obra? Com o que você trabalha, com o sagrado ou o secular? Essas e outras perguntas são fruto de uma visão partida da realidade, fruto de uma cosmovisão fragmentada e misturada. A maioria dos cristãos brasileiros, pertencentes a comunidades neopentecostais ou de pouca tradição histórica / teológica usam esse discurso – fruto de uma forma de pensar e ver o mundo – corriqueiramente. Todavia, esse dualismo tem um contexto interessante, que devemos considerar para, a partir dele, reformular aquilo que diverge das escrituras e de uma cosmovisão genuinamente cristã. 

Esse dualismo que desassocia o sagrado do cotidiano, teoria da prática, realidade espiritual da natural, entrou na cristandade a partir da mistura entre a cosmovisão judaico-cristã com os ensinos filosóficos gregos. O divisor de águas na tradição cristã, para que essa teoria se consolidasse, foi Tomás de Aquino. Dulci[1], explicando sobre o assunto afirma: 

Estabelecendo essa distinção entre dois modos de conhecer a verdade, Aquino reforçou uma forma de enxergar a realidade que já era defendida por Aristóteles. Tratava-se de compreender a realidade divida em dois andares: no andar superior estavam os assuntos e objetos divinos, isto é, Deus, sua revelação, a fé e a salvação. No andar de baixo, estavam os objetos e assuntos naturais, ou seja, a própria natureza, os objetos do mundo, a ética, a estética e tudo aquilo que poderíamos conhecer com nossa razão. [...] 
Foi em razão dessa distinção que Aquino não conseguiu sustentar o título de ciência para a teologia – os conteúdos bíblicos não são princípios evidentes por si mesmos, por isso, no máximo, a teologia poderia ser uma ciência subordinada às evidências de uma ciência superior. A teologia seria uma ciência subalterna. 

Esse dualismo entre os gregos era chamado de Matéria x Forma, a partir do segundo século da era cristã, temos o dualismo Natureza x Graça. A raiz dessa dicotomia, entre natureza e graça, se deu por conta da forma como os teólogos medievais entendiam a queda. Para os mesmos esta havia afetado apenas o relacionamento do homem com Deus, não a imagem de Deus no homem e suas capacidades de raciocínio e relação com as demais coisas criadas. Ou seja, não havia um entendimento da depravação total do homem. 

Esse dualismo estabelecido na teologia dos primeiros séculos da era cristã trouxe sérias consequências para a prática cristã dos dias atuais, os cristãos brasileiros, como os muitos que conheci de outras nacionalidades tem grande dificuldade de enxergar o mundo de modo total. Além dessa herança teológica temos as expressões culturais ocidentais – extremos reducionistas – que também beberam na mesma fonte grega (Ex.: hedonismo, capitalismo, socialismo, historicismo, feminismo...) e contribuem para a formação de como nós, ocidentais, vemos o mundo. Em resumo toda a cosmovisão do ocidente está enraizada no pensamento grego. 

Esse dualismo trouxe sérias consequências, as quais fazem parte do cotidiano da era pós-moderna: secularização da ciência, polarização política, sentimentalismo moral, irracionalismo estético e indiferença sexual. E como a Igreja tem agido ante a isso? Creio que o leitor saiba a resposta: engolidos pela cultura pop[2]

Tendo consciência disso, e entendendo que o evangelho e a Bíblia nos ensinam a ver o mundo de modo integral, precisamos combater essas fortalezas que foram construídas em nossa mente, por meio de uma cosmovisão genuinamente cristã e fundamentada na palavra de Deus. 

Porque, embora andando na carne, não militamos segundo a carne. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo. 
(II Coríntios 10:3-5) 

A cosmovisão cristã é constituída por uma narrativa, baseada em criação-queda-redenção (esta inclui tanto a primeira quanto a segunda vinda do Messias). E nossa perspectiva de perfeição e completude é a trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Portanto, tudo que temos diante de nós deve ser visto sobre a perspectiva de que há uma graça comum sobre tudo aquilo que Deus criou, como também há níveis de queda dentro da criação, todavia, em Cristo é possível redimir aquilo que o pecado degradou. Quando falo em ver o mundo nessa perspectiva, falo de todas as esferas que compõem a integralidade do homem: família, educação, política, igreja, ciência, sociedade...e toda a produção cultural fruto dessa estrutura. Segundo Guilherme de Carvalho[3]

O motivo bíblico nasceu da revelação redentora de Deus ao homem, consumada na pessoa de Jesus Cristo e aplicada pelo Espírito Santo. Essa revelação nos fornece as estruturas fundamentais de uma cosmovisão cristã. Em primeiro lugar, ela reconhece todo o cosmo como criação de Deus. Deus é a única origem absoluta... A queda do homem alienou toda a criação de Deus. Não destruiu a própria estrutura da criação, nem tornou nenhum de seus aspectos essencialmente maligno, mas a colocou numa direção de apostasia... A redenção, consumada por Jesus Cristo, envolve a recriação do homem, como “novo homem” em si mesmo, e, com isso, o redirecionamento da criação para Deus. 

Como é muito popular no contexto reformado, não é possível falar em esferas da vida humana sem falar a respeito de Abraham Kuyper. Talvez para você seja novidade, mas a tradição cristã é rica em produção a respeito de política e atuação na esfera pública. Abraham Kuyper foi um político, jornalista, estadista e teólogo holandês. Ele fundou o partido Anti-revolucionário e foi primeiro ministro dos países baixos entre 1901 a 1905. Kuyper foi um dos precursores do neocalvinismo e deixou discípulos que contribuem até os dias de hoje com a teologia pública[4]

Segundo Kuyper a vida humana é dividida em esferas específicas que possuem seus limites de governo e atuação, e todas elas estão submissas às leis de Deus. Kuyper fez um diagrama bem interessante para ilustrar sua teoria[5]. Uma de suas mais famosas exclamações é a seguinte: 

Ó, não existe nenhuma parte sequer do nosso mundo do pensamento que possa ser hermeticamente separado das outras partes; não há um único centímetro quadrado, em todo o domínio de nossa vida humana, sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: Meu! 

Ela expressa tanto a soberania de Deus sobre toda sua criação, como a vontade de Deus em ser glorificado por meio de seus filhos a partir dos mandatos criacionais. Conforme a teologia reformada entende-se que o pacto estabelecido entre Deus e o homem no jardim incluía três mandatos: a) Mandato social – está expresso na parte que diz “frutificai e multiplicai” – formação da família e civilizações; b) Mandato cultural – está expresso da frase “enchei a terra, sujeita-a e dominai” – é importante ressaltar que a palavra domínio tem significado de governo / supervisão e c) Mandato Espiritual – “e abençoou Deus o da sétimo e o santificou” – aqui está estabelecido o relacionamento dos seres humanos com o criador de todas as coisas. 

A igreja do Senhor Jesus é muito eficaz no mandato espiritual e até mesmo social, mas temos negligenciado por séculos o mandato cultural. Deixamos espaços vagos no meio artístico, no meio literário, científico, acadêmico e político por que, na nossa mente são dois ambientes completamente diferentes, são duas caixas separadas (sagrado x secular). Influenciamos pouco por não entender com clareza que Deus deseja ser glorificado em cada esfera da vida humana. 

Por décadas no Brasil temos uma produção massiva do “Gospel”, para um mercado específico, infelizmente uma parte significativa dessas produções, em sua maioria musicais, tem pouca cosmovisão cristã. Parece contraditório, mas é verdade. O objetivo de Deus era que toda a criação fosse influenciada e governada por seus filhos, culturalmente falando. Não estou dizendo que é errado ter produção específica para um público específico, mas pensemos como Deus é mais glorificado quando o mostramos em produções artísticas, literárias e científicas que atingem não apenas cristãos, mas pessoas de diversos credos, filosofias e pensamentos? 

Um exemplo clássico dessa influência é C.S Lewis com “As crônicas de Nárnia” e suas outras produções de ficção científica que até hoje são lidos por diversos públicos e tem influencia gerações. 
Outro ponto interessante a ser analisado é a pergunta que não quer calar: Porque a igreja brasileira cresce, mas o país não muda? A resposta está na nossa cosmovisão. Nessa perspectiva afirma Rodolfo Amorim: 

Ao observarmos a igreja evangélica brasileira hoje, constatamos um fato irrefutável: ela não tem refletido, em influência concreta na realidade sociocultural que nos cerca, a amplitude de seu crescimento numérico... A civilização ocidental tem relegado o cristianismo brasileiro a uma dimensão estreita da vida, sem capacidade de se apresentar como verdade total... Temos aprendido a nos relacionar com Deus salvador e adorá-lo, mas não temos aprendido a servi-lo e honrá-lo como o Deus Criador. 

Situações controversas de cristãos na política que tem entrado em esquemas de corrupção, homens e mulheres que se dizem cristãos, mas continuam vivendo em promiscuidade ou trabalhando no ramo da prostituição. Nós cristãos precisamos entender que a igreja, o trabalho, a escola / faculdade, política, ciência e as demais esferas da vida humana fazem parte da mesma realidade. Tudo isso é uma caixa só! Não podemos dividir essas categorias e achar que podemos viver alguma delas de modo independente de Deus e seu governo. Precisamos rejeitar esse dualismo de nossos corações e mente. Não é uma tarefa fácil, mas com o auxílio do Espírito Santo isso é possível. 

É tão precioso termos consciência dessa verdade que até mesmo nossa escatologia e percepção da morte irá mudar. Viver e morrer fazem parte de uma mesma realidade. Viver e morrer é Cristo! Viver e morrer para a glória do Eterno! Que os olhos do nosso coração venham ser abertos para essa verdade, que nossas atitudes venham refletir essa expansão de mente (metanoia) que o Espírito Santo está fazendo em nós. 







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[1] Pedro Lucas Dulci – Ortodoxia Integral (2015) 

[2] As relações publicas são uma grande indústria. Hoje em dia gasta-se com relações públicas qualquer coisa como um milhar de milhão de dólares por ano. O seu objetivo é sempre “controlar o estado de espírito público”...A pergunta “apoia a nossa política” não pretende que as pessoas pensem sobre essa pergunta. É esse o objetivo da boa propaganda. Pretende-se criar uma palavra de ordem com que não só ninguém possa estar em desacordo, como até com que toda a gente concorde. Ninguém sabe o que significa precisamente porque não significa nada. A sua importância provém da sua capacidade de afastar a atenção das pessoas de qualquer pergunta que signifique alguma coisa. (Noam Chomsky – A manipulação das mídias (1991).

[3] Cosmovisão cristã e transformação – 2006

[4] Herman Dooyewerd, Hans R. Rookmaaker, Kevin J. Vanhoozer, Michael Goheen. Há também faculdades e instituições como o Ladri Brasil que carregam o legado deixado por Kuyper.

[5] A soberania das esferas – 1880 . Veja o diagrama em: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn%3AANd9GcS46iUGRKImdG6ezAAEBRgbNvxOvbtKDgd0IA&usqp=CAU

domingo, 23 de agosto de 2020

Escatologia XI – Os Seres que vivem diante do Trono de Deus



Enquanto a terra vive sem perceber quem tu és. 
No céu agora mesmo, todos conhecem tua beleza. [...] 
Eu vejo um trono no mais alto céu e tu estás assentado em glória. 
Eu vejo um trono no mais alto céu e tu estás cheio de majestade. [...] 
Quem dera tivesse mil olhos. 

(Ministério Convergência – Apocalipse 4)





Uma das partes mais fascinantes do livro de Apocalipse são as cenas do céu que precedem momentos importantes. Se você observar, antes de cada sequência de juízos, João descreve como está o céu, qual solenidade está acontecendo antes dos juízos serem derramados sobre a terra. Como falei na primeira postagem dessa sequência de estudos, Apocalipse é a revelação de uma pessoa, Jesus Cristo. É a revelação da beleza dos três: Pai, Filho e Espírito.

E logo fui arrebatado em espírito, e eis que um trono estava posto no céu, e um assentado sobre o trono. E o que estava assentado era, na aparência, semelhante à pedra jaspe e sardônica; e o arco celeste estava ao redor do trono, e parecia semelhante à esmeralda. 
E ao redor do trono havia vinte e quatro tronos; e vi assentados sobre os tronos vinte e quatro anciãos vestidos de vestes brancas; e tinham sobre suas cabeças coroas de ouro. 
E do trono saíam relâmpagos, e trovões, e vozes; e diante do trono ardiam sete lâmpadas de fogo, as quais são os sete espíritos de Deus. 
E havia diante do trono um como mar de vidro, semelhante ao cristal. E no meio do trono, e ao redor do trono, quatro animais cheios de olhos, por diante e por detrás. 
[...] e não descansam nem de dia nem de noite, dizendo: Santo, Santo, Santo, é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, que era, e que é, e que há de vir. 
E, quando os animais davam glória, e honra, e ações de graças ao que estava assentado sobre o trono, ao que vive para todo o sempre, 
Os vinte e quatro anciãos prostravam-se diante do que estava assentado sobre o trono, e adoravam o que vive para todo o sempre; e lançavam as suas coroas diante do trono, dizendo: 
Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder; porque tu criaste todas as coisas, e por tua vontade são e foram criadas. 
(Apocalipse 4:2-11) 


O Trono de Deus é o centro do universo. É óbvio que Deus não se cansa e nem precisa ficar sentado. O Trono é um símbolo da soberania, autoridade e governo do Eterno, e é a partir do Trono que o Senhor age e governa. Todos aqueles que viram o Trono nunca mais foram os mesmos: Daniel ficou fraco e alarmado (Dn 7:15-16), Isaías exclamou: “Ai de mim! Estou perdido!” (Is 6:1-5), Ezequiel caiu estatelado (Ez 1:26-28), João caiu como morto no primeiro capítulo quando vê Jesus. O Trono abala nossas estruturas, muda completamente nossos conceitos de força e se curva reconhecendo que só o Altíssimo é poderoso e soberano. 

A qualidade da nossa vida cristã está intimamente ligada à revelação que temos do Trono de Deus. Quando um discípulo de Jesus contempla o trono de Deus não conseguirá ter uma vida espiritual medíocre, ele ansiará por profundidade. Ninguém se torna naturalmente profundo, isso requer levar as disciplinas espirituais a sério. A profundidade é fruto de duas experiências: amor e temor ao Senhor. O temor está relacionado a saber quem Deus é. O temor traz reverencia e nos impede de brincar com Deus, com sua Palavra e as demais coisas espirituais. Intimidade sem reverência é superficialidade emocional. 

Em Mateus 10:28 Jesus diz que devemos temer aquele que tem poder sobre a vida e sobre a morte. Alguns acreditam que Deus é amor e não disciplina ninguém, todavia a Bíblia diz o contrário. Temível é aquele que está assentado no trono. João não ousa descrevê-lo. Deus não pode ser descrito e classificado em categorias humanas. Ele é único, inexprimível, extraordinário, inefável. 


A Descrição do Trono 

a) Um arco-íris ao redor do trono: Em Gênesis 9:13 esse foi o símbolo estabelecido por Deus como memorial da aliança feita com Noé. O arco ao redor do Trono de Deus aponta para graça e fidelidade. Aqueles que possuem revelação do Trono estão comprometidos com a salvação da humanidade. Aqueles que compreendem o senhorio, governo e soberania de Deus estão comprometidos com a salvação das nações. 

b) Do Trono saem relâmpagos, vozes e trovões: Se você observar as outras cenas do livro de Apocalipse, que precedem os juízos de Deus sobre a terra, como Apocalipse 8:5, os relâmpagos, vozes e trovões são respostas às orações dos santos. Hoje quando oramos em linha com o trono de Deus, o Senhor responde com poder e impacto na terra. Durante a grande tribulação, tempo em que Deus derramará seus juízos sobre a terra, a Igreja estará orando em linha com a vontade de Deus e os juízos virão. Como afirma Mike Biclke, Joel Richardson e Victor Vieira o livro de Apocalipse será um manual de orações para o fim dos tempos. 

c) Diante do Trono arde o fogo do Espirito: O texto fala dos sete espíritos de Deus. Há opiniões diversas sobre isso, Deus tem sete espíritos? Alguns afirmam que sim, todavia creio que temos um pouco de simbolismo aqui. Quando se estuda sobre a simbologia dos números da Bíblia, você vai perceber que o sete é um número de perfeição e plenitude. Então o Espírito de Santo aqui (a terceira pessoa da Trindade) está em toda sua plenitude, poder e glória como o Pai e Filho. Perceba também que o fogo, uma figura muito usada para descrever o Espírito Santo na bíblia como também o próprio Deus, deve fazer parte da vida do cristão. Desejar o fogo de Deus significa desejar uma vida de santificação e pureza. Só há fogo se Cristo for Senhor de nossas vidas, só há fogo para quem vive diante do Trono. 

d) Um mar de vidro como Cristal: Esse vidro como cristal aponta para justiça e verdade. Diante do trono não há espaço para dissimulação e fingimento. Transparência é a base do trono de Deus. Esse mar de vidro também é mesclado com fogo (Dn 7:10). É nesse mar que o inferno será lançado. Deus é fogo consumidor e faz dos seus ministros labaredas de fogo, semelhantes e Ele (Hb 1:7). 

e) Do Trono sai o Rio da Vida: (Apocalipse 22:1) Jesus afirma que os que creem Nele, do seu interior fluirão rios de águas vivas. O rio flui do trono, se o governo e o senhorio de Jesus Cristo estão estabelecidos em nossos corações o fluir do Espírito Santo será uma realidade em nós. 

Segundo o texto há pelo menos três categorias de seres que vivem diante do Trono de Deus. Suas características e estilo de vida nos ensinam muito: 


1) OS ANJOS – Apocalipse mostra que a medida dos anjos é igual à medida de homem (Ap. 21:17). No Antigo Testamento, percebemos isso de modo claro, posto que, a aparição deles para as pessoas não era algo que gerava estranhamento ou pânico, mesmo sendo identificados como anjos, se passavam tranquilamente por seres humanos. Hebreus 1:14 afirma que eles foram enviados para servir e proteger aqueles que hão de herdar a salvação. Eles são operários celestiais, e por serem criaturas do trono, eles nos servem de ilustração como aqueles que fazem do Trono o centro de suas vidas. Eles são mensageiros às Igrejas e às nações. Também são responsáveis por anunciar os juízos de Deus, seus oráculos e mistérios. A nós também foi dada essas funções, por meio do Corpo de Cristo, a Igreja. Uma parte dos anjos também tem a função de guerreiros (Ap 12:7 e Dn 7:9). Aqueles que estão diante do trono de Deus também são guerreiros! Tudo aquilo que os anjos fazem, nós também podemos fazer. 

2) OS SERES VIVENTES – É válido ressaltar aqui que esses seres viventes são os mesmos serafins, vistos por Ezequiel (Ez 1:13-14). Uma das características mais marcantes desses seres são os olhos e a contínua adoração. Os olhos falam de visão e revelação (ter desvendado diante de si aquilo que você não via ou entendia Ef 1). Os Viventes possuem uma visão em quatro dimensões: a) Olhos que contemplam o Eterno, b) Olhos que estão sensíveis ao que está ao seu redor, c) Olhos nas costas que conseguem visualizar o passado e estar atento ao inimigo, d) Olhos que visualizam sua alma e aquilo que está dentro do seu coração. 

É interessante a realidade desses seres que vivem diante do Trono de Deus: são cheios de vida, eles contemplam o Eterno e são cheios de vida; segundo a descrição de Ezequiel, são seres flamejantes – a palavra serafim significa aqueles que queimam – ou seja, semelhantes ao que está sentado no Trono. A vida deles é contemplar os vários aspectos da beleza trinitária de Deus. 

Meu suspirar é semelhante aos que cantam: “Quem dera eu tivesse mil olhos, para poder te contemplar!”. Quem me dera ter mil olhos, como os seres viventes, para ver essa beleza que ilumina todos os lugares mais escuros e confusos da minha alma! 
Essa função de adoração diante do trono é a função sacerdotal. Deus criou o homem para esse fim, governo e sacerdócio (Ap 1:6). 

3) OS VINTE E QUATRO ANCIÃOS – Há muitas interpretações a respeito dessa outra categoria de seres que vivem diante do Trono de Deus. A que mais achei equilibrada e lógica de acordo com a interpretação literal, é de que seriam uma categoria mais elevada de anjos. Provavelmente foram os primeiros seres da criação divina, criados para governar o universo sob a autoridade e soberania do Trono do Eterno. Prova disso são seus tronos e suas coroas – símbolos de governo e autoridade – que estão diante do Trono de Deus. Sabemos que o universo e toda a criação serão governados por Deus em parceria com a humanidade. Em Cristo esse propósito glorioso foi restaurado, portanto, esses tronos ocupados pelos 24 anciãos serão dados a seres humanos que governarão o universo com Cristo. 

Nós que por tantas vezes perguntamos por meio de canções, juntamente com Laura e Gabriel Guedes: "O que é que os anjos vêem que os fazem se prostrar, o que é o que os anjos vêem que os fazem cantar santo.." temos a resposta na descrição feita por João do impacto do Trono e da beleza do Eterno revelada nas sua multiforme sabedoria, glória, poder e soberania. São muitos ângulos que os seres que vivem diante do Trono de Deus podem olhar. E ao contemplar tamanha beleza não há como não ficar fascinado!
Que nesses dias a revelação do Trono de Deus seja uma realidade diária no lugar secreto, que os vários ângulos da beleza do Eterno possa nos fascinar! Que nossas vidas seja uma oração, um constante cântico que adore Àquele que está sentado no Trono. Que nosso coração possa enxergar quão belo é Jesus. 



Maranata!

sábado, 15 de agosto de 2020

Escatologia X – O reino milenar do Messias

 



Para a terra Ele voltará, sobre tudo o Filho reinará!
 Tudo novo o noivo fará, e conosco sempre estará. [...] 
Jesus filho de Deus, Jesus herdeiro de tudo, Jesus Emanuel [...] 
Testemunha fiel, primogênito dentre os mortos, soberano dos reis da terra. 
(Philip Muns – Fhop)






Como já disse anteriormente, meu objetivo com essas postagens sobre escatologia é aquecer nosso coração em relação ao Noivo e seu retorno. Tenho feito isso na perspectiva pré-milenista histórica. O milênio, tempo de restauração da terra e estabelecimento de um governo de justiça e paz, possui entendimentos diversos dentro da cristandade. 


Um breve relato histórico

As três principais linhas existentes hoje são: a) Os pré-milenistas; b) Os amilenistas e c) Os pós-milenistas. O pré-milenismo, linha que crê em um reinado literal do Messias, era muito forte nos primeiros séculos da Igreja. Líderes como Tertuliano, Irineu, Justino Mártir, como também, os judeus (discípulos de Jesus) aguardavam um reino físico e terreno, onde o Messias governaria todas as nações da terra a partir de Jerusalém. 

No quarto século, quando o imperador Constantino uniu estado e igreja, o amilenismo tornou-se o entendimento da maioria dos líderes, consolidando-se com Agostinho de Hipona em 431. A linha amilenista entende que o reino já foi estabelecido na primeira vinda de Cristo, sendo simbólico o período dos mil anos, e Israel foi substituído pela Igreja. Nesse período, crer no milênio tornou-se superstição. Apesar da doutrina oficial, durante a Idade Média, ser amilenista, o milenismo[1] continuou existindo em certos grupos cristãos. 

Alguns episódios controversos, como o ocorrido em 1534, liderado por Jan Mathys, que tomaram a força o governo de uma cidade[2] declarando ser Enoque e que estavam preparando o caminho para a volta de Jesus, levou alguns reformadores – Calvino – a terem cautela em relação à vertente milenista. Todavia foi por meio de um teólogo de tradição calvinista, Johann Heinrich Alsted, que o milenismo voltou ao debate acadêmico; que anos depois inspirou a revolução puritana[3] na Inglaterra. Por conta desse período, também controverso, o pré-milenismo caiu novamente em descrédito. E começou a crescer a linha pós-milenista[4], com Daniel Whitby, durante o século XVIII. 

Durante o século XIX o pré-milenismo volta a ganhar voz com o dispensacionalismo[5], por J. N. Darby. E como falamos anteriormente, essa vertente se popularizou entre meio evangélico; no Brasil, ainda é muito forte nos dias atuais. 


Fundamentos Bíblicos para entendermos o milênio[6]

O que a Bíblia fala a respeito desse tempo? Como será o reinado do Messias sobre a terra? A seguir veremos algumas promessas e eventos que se concretizarão apenas no milênio, o tempo de mil anos em que Jesus reinará as nações da terra a partir de Jerusalém. 

O sétimo anjo tocou sua trombeta, e fortes vozes gritaram no céu: 
“O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e de seu Cristo, e ele reinará para todo sempre.” 
(Apocalipse 11:15) 

É importante relembrar que o reino milenar será estabelecido após a Grande Tribulação, ao soar da sétima trombeta. Cristo descerá nas nuvens, com Ele estarão os santos ressurretos e irão em direção a Jerusalém. Após a derrota final do Anticristo e seu governo[7], Jesus estabelecerá seu reinado a partir de Jerusalém. 


1) O Diabo será aprisionado

A primeira ação no milênio será o aprisionamento de Satanás. Segundo o texto ele ficará sem atuar no meio dos seres humanos por mil anos. Esse é um ponto interessante para argumentarmos sobre o milênio literal, e um dos grandes questionamentos para os que entendem que já estamos vivendo o milênio. Satanás hoje continua atuando, enganando as nações, influenciando e escravizando pessoas. Sua atuação ainda é presente e real, é fato que a Igreja tem poder para expulsar e trazer luz às trevas, todavia o que fazemos agora é apenas sinalizar o reino que está por vir. 

Então vi um anjo descer do céu trazendo na mão a chave do abismo e uma grande corrente. Ele prendeu o dragão, a antiga serpente que é o diabo, Satanás, e o acorrentou por mil anos. O anjo o lançou no abismo, o fechou e pôs um lacre na porta, de modo que ele não pudesse mais enganar as nações até que terminasse os mil anos. 
(Apocalipse 20:1-3) 

A vitória final sobre Satanás será ao final dos mil anos de reinado do Messias. É interessante esse ponto, por que muitas vezes pensamos: por que Deus não acaba logo com o diabo? Por que Ele demora tanto com isso? Ele poderia ter feito desde Gênesis, poderia ter poupado todo sofrimento e trabalho. Todavia, meus caros, o nosso Deus é o Deus dos processos e acima de tudo Ele é um Deus justo, que respeita as leis que Ele mesmo estabeleceu, que regem toda criação, com seus seres visíveis e invisíveis. 


2) Os santos reinarão com Cristo

É importante lembrar que Cristo está retornando e com Ele está a recompensa (Apocalipse 22:12). Ele dará a cada um segundo suas obras. Hoje falamos muito sobre a graça em sermos salvos do pecado e da ira de Deus, mas o restante das boas novas inclui o discipulado e uma vida de crucificação – fazer a vontade de Deus. 

[...] Vi também as almas daqueles que haviam sido decapitados por testemunharem a respeito de Jesus e por proclamarem a palavra de Deus. [...] Eles ressuscitaram e reinaram com Cristo por mil anos. [...] Felizes e santos são aqueles que participaram da primeira ressurreição. A segunda morte não tem poder algum sobre eles, pois serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele por mil anos. 
(Apocalipse 20:4-6) 

As nações serão governadas por Jesus juntamente com os santos de todas as eras. É exatamente nesse período que a criação e as nações verão a manifestação dos filhos de Deus em toda sua plenitude. É válido ressaltar que durante o milênio haverá: a) Os cristãos que reinarão com o Messias – que durante sua vida (antes da ressurreição e o corpo de glória) viveram em obediência e amando a vinda do Senhor. São aqueles que tiveram obras na dependência do Espírito (I Coríntios 3:12-15)[8]; b) Os cristãos que não reinarão – são aqueles que não receberão recompensa; c) Os judeus – Aqueles que confessaram Jesus como Messias, mas terão um papel diferenciado no milênio; d) Os povos que serão governados por Jesus – ainda existirão pessoas na terra após a Grande Tribulação e o governo do Anticristo. 

Jesus fala sobre alguns tipos de recompensa em forma de governo nas parábolas, principalmente no livro de Mateus. Parábolas dos talentos, das minas, do servo, Jesus está falando sobre alguns exemplos de governo. É importante ressaltar que algumas profissões que existem hoje serão importantes no reino milenar. É claro que o exercício delas e o governo com Cristo será medido pelo caráter, quanto mais parecidos com Cristo mais confiáveis seremos. 
É válido ressaltar que estaremos com nosso corpo de glória, portanto poderemos produzir e trabalhar muito mais e melhor. Teremos a capacidade de usar o máximo das nossas faculdades intelectuais e físicas. Será realmente incrível! 


3) As nações serão discipuladas

A palavra de Deus fala que a lei sairá de Sião, as nações serão regidas segundo as leis estabelecidas por Deus. Fala também que todas as nações subirão a Jerusalém para cultuar o Messias. 

Em todo o meu santo monte, não se fará mal nem haverá destruição, pois, como as águas enchem o mar, a terra estará cheia de gente que conhece o Senhor. 
(Isaías 11:9) 

Alguns teólogos acreditam que haverá escolas para ensinar sobre os preceitos e mandamentos do Eterno. Escolas de discipulado e ensinamentos a respeito de Jesus e a eternidade. 


4) Restauração de toda criação – fauna e flora

A terra que conhecemos hoje é simplesmente uma sombra do que ela já foi antes da queda. É objetivo de Deus restaurar a terra como ela era na época do jardim do Éden. Essa expectativa não está apenas no coração de Deus, mas toda a criação anseia por esse dia.

Pois toda a criação aguarda com grande expectativa o dia em que os filhos de Deus serão revelados. Toda a criação, não por vontade própria, foi submetida por Deus a uma existência fútil, na esperança de que, com os filhos de Deus, a criação seja gloriosamente liberta da decadência que a escraviza. 
(Romanos 8:19-21) 

Particularmente, consigo imaginar os biólogos e outras profissões dessa área em parceria com Jesus na restauração dos biomas, das vegetações, as espécies extintas voltando a existir. Penso também na oportunidade de ver plantas e animais que nunca vi antes, e como a paisagem completa da terra será incrivelmente bela. 


5) Longevidade

Quando olhamos para os primeiros habitantes da terra (no livro de Gênesis) e a quantidade de tempo que viveram, assustamos, e muitas vezes para tentar entender, afirmamos que os cálculos (dos anos / estações) eram feitos de modo diferente, todavia, uma coisa é fato, a terra tem se tornado cada vez mais insalubre e a expectativa de vida foi drasticamente reduzida[9]. Atualmente são poucos os que ultrapassam os 80 anos de idade, e pouquíssimo ultrapassam os 100 anos. Durante o milênio alguém com 100 anos será considerado jovem. 

Nunca mais morrerão bebês de poucos dias, nunca mais morrerão adultos antes de terem uma vida plena. Ninguém mais será considerado velho aos cem anos; somente os amaldiçoados morrerão jovens. 
(Isaías 65:20) 

Apocalipse fala sobre as folhas da árvore de vida que servirão para cura das nações, provavelmente durante o milênio elas estarão disponíveis. Imagine só os médicos podendo curar doenças incuráveis? Será realmente incrível! 
É válido ressaltar que durante o milênio a morte ainda existirá, posto que, a morte será o último inimigo a ser vencido (I Coríntios 15:24-26). A morte e Satanás serão completamente destruídos no final do milênio (Apocalipse 20:10). 


6) Justiça e paz

Haverá harmonia e paz na criação. Haverá paz, porque o Príncipe da paz reinará sobre tudo e todos. Aquele que sonda mente e coração governará de corpo presente! 
O senso de justiça e reivindicação de direitos é uma marca presente em gerações que nos precederam, como também a nossa própria geração. As mobilizações contra todo tipo de violência (em especial contra crianças e mulheres), às discriminações étnicas e ao tráfico humano tem sido as principais pautas de nossas orações e luta. Bem-aventurados os que tem sede e fome de justiça pois eles serão fartos! 

Naquele dia, o lobo viverá com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito. O bezerro estará seguro perto do leão, e uma criança os guiará. 
A vaca pastará perto do urso, e seus filhotes descansarão juntos; o leão comerá capim, como a vaca. O bebê brincará em segurança perto da toca da cobra; sim, a criancinha colocará a mão num ninho de víboras. 
(Isaías 11:6-8) 

Quando a opressão e a destruição tiverem terminado, quando os invasores inimigos tiverem partido, Deus estabelecerá como rei um dos descendentes de Davi. Ele reinará com misericórdia e verdade, julgará sempre com imparcialidade e buscará fazer o que é justo. 
(Isaías 16:4,5) 

É importante lembrar que praticamente todas as promessas feitas a Abraão e a maioria das profecias de restauração de Israel serão cumpridas durante o milênio. Todas as famílias da terra serão abençoadas pelo governo do Messias, que saiu da linhagem de Abraão. 
O mais incrível que vejo ao estudar sobre o reino milenar é que será um tempo de preparação para a tabernaculação perpétua da humanidade com Deus Pai. A terra, o homem e toda criação estarão sendo preparados para receber a Trindade de modo completo. A divindade habitará com (na) humanidade! O propósito eterno de Deus se cumprirá! 





Maranata! 


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[1] Quando cito Milenismo me refiro à vertente pré-milenista, posto que o pós-milenismo só vai aparecer no século XVII.

[2] Na Holanda. Mathys era um líder anabatista carismático da rebelião de Münster, considerado por seus seguidores como profeta. 

[3] Para saber mais sobre o assunto ouça o BTcast 314 – Os Puritanos.

[4] De acordo com sua interpretação, o mundo teria de ser convertido a Cristo, os judeus restaurados à sua terra e o papa e os turcos derrotados, após o que a terra gozaria um tempo de paz, felicidade e justiça universais por mif anos. Ao final deste período Cristo retornaria pessoalmente para o juízo final. Talvez por causa de sua concordância com os pontos de vista do iluminismo do século XVIII, o pós-milenismo foi adotado pelos principais comentadores e pregadores da época.

[5] Para saber mais sobre leia nossa postagem anterior “Arrebatamento secreto?”: https://mentes-renovadasmay.blogspot.com/2020/07/escatologia-viii-arrebatamento-secreto.html

[6] É válido ressaltar que em todas essas vertentes teológicas existiram e existem cristãos sinceros, que amam, pregam e anseiam a volta de Jesus. Todavia, as exposições a seguir podem te ajudar a chegar a uma conclusão pessoal a respeito desse tema.

[7] ...Tanto a besta como seu falso profeta foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre. (Apocalipse 19:20)

[8] Segundo a palavra, haverá um dia de prestação de contas diante de Jesus. Os cristãos prestarão conta do que fizeram diante do Senhor. Entendemos que isso acontecerá antes do milênio, e esse momento é chamado de Tribunal de Cristo. Onde passaremos pelo fogo e nossas obras passarão junto, o que ficar será recompensado, o que for queimado, se perderá. Leia I Coríntios 3:12-15.

[9] A primeira redução na quantidade dos anos de vida dos homens foi feita pelo próprio Deus (Gênesis 6:3), depois as próprias condições terrenas entraram no processo de mortificação e finitude. A morte foi uma consequência do pecado da humanidade que afetou toda a criação!

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Cosmovisão I - Fragmentado

 

Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo.

Por isso também na Escritura se contém: Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido.

(I Pedro 2:5,6)


A cultura pop apresenta de forma artística os frutos de reflexões pautadas em filosofias e crenças que se quer passam por nossa cabeça quando sentamos no sofá para assistir um filme, ou quando ligamos o Spotify para ouvir uma música. A era pós-moderna trouxe consigo a fragmentariedade, a liquidez das relações e as profundas crises de identidade, surtos psicóticos, doenças desconhecidas e raras.

Frases como: “Vou te ensinar algo que aprendi, acho que não descobrimos quem somos de uma vez, acho que acontece durante a vida, JUNTAMOS AS PARTES...” / “Prefere imaginar uma relação com alguém ausente a criar laço com os que estão presentes?” / “Qual é o centro do mundo pra você? É o amor, eu acho.” não te fazem visualizar Frankenstein[1]?

Juntar fragmentos e formar um novo ser é a história do jovem médico Frankenstein e sua criação, o monstro. E talvez seja esse o resultado da costura identitária ensinada pela filosofia pós-moderna, o monstro de Frankenstein.  

Lembro de um programa que passava na Tv Cultura, direcionado para o público infantil-juvenil: “Tudo que é sólido pode derreter”. Bem baumeniano[2] e filosófico, mas simples o suficiente para pré-adolescentes absorverem a mensagem central da pós-modernidade: “Nada dura para sempre!” / “Tudo que é sólido se desmancha no ar.” / “Não se apegue, por que essa relação pode acabar amanhã.”.

O reverendo Pedro Lucas Dulci em seu curso “Questões de gênero – sexo, ciência e sociedade” afirma que a sociedade pós-moderna oferece fragmentos a seus integrantes, estes, por sua vez, pegam as partes que lhe são oferecidas e se montam afirmando: “Este sou eu”, mas a própria costura das partes permite mudanças e fluidez em arrancar uma parte e costurar uma nova.

 

As pessoas são atormentadas pelo problema da identidade. No topo, o problema é escolher o melhor padrão entre os muito atualmente em oferta, montar as partes do kit vendidas separadamente e apertá-las de uma forma que não seja nem muito frouxa (para que os pedaços feios, defasados e envelhecidos que deveria ser escondidos embaixo não apareçam nas costuras), nem muito apertada (para que a colcha de retalhos não se desfaça de uma vez quando chegar a hora do desmantelamento, o que certamente ocorrerá).

(Zigmunt Bauman)

 

Essa mesma flexibilidade tornou-se uma faca de dois gumes para o indivíduo, veja o que afirma Michael Goheen e Craig Bartholomew:

Nossa cultura é uma cultura em busca de sentido. A fragmentação que a pós-modernidade infringiu à nossa cultura e o seu solapamento da modernidade deixaram a cultura ocidental cada vez mais sem uma base sólida em que possa encontrar sentido para fundamentar suas práticas. A pós-modernidade reduziu a grande narrativa da modernidade a “um montão de imagens quebradas”.

 

Dulci afirma que essa fragmentação se deu a partir do contexto histórico da aceleração da vida, como também pelos reducionismos advindos das relações comerciais – lucro e déficit – que passaram a explicar o ser humano, e suas relações afetivas. O ser humano foi reduzido ao mercado e a seus afetos, ao que sente. O mercado tornou-se afetivo, e as relações viraram produtos que podem “facilmente” ser substituídos ou descartados, caso não satisfaça o cliente. Essa falta de solidez colocou o “Eros” em agonia e as demais relações interpessoais em mera reprodução de si mesmo, posto que o objetivo das relações tornou-se engolir o outro, reduzindo-o à si mesmo, como o agente Smith[3] .

 

Nos últimos tempos tem-se propalado o fim do amor. Hoje, o amor estaria desaparecendo por causa da infinita liberdade de escolha, da multiplicidade de opções e da coerção da otimização. Num mundo de possibilidades infinitas, o amor não tem vez. [...] Mas essas teorias sociológicas do amor não percebem que... não é apenas a oferta de outros outros que contribui para a crise do amor, mas a erosão do Outro, que por ora ocorre em todos os âmbitos da vida e caminha cada vez mais de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo. O eros aplica-se em sentido enfático ao outro que não pode ser abarcado pelo regime do eu. No inferno do igual, que vai igualando cada vez mais a sociedade atual, já não mais nos encontramos, portanto, com a experiência erótica.

(Byung-Chul Han)

 

Como bem afirma Dulci, todo reducionismo é empobrecedor, e impede o diálogo com as demais esferas da vida social. O ser humano, como é de saber comum, é integral e bem mais complexo que o mercado e suas afeições. A afetividade faz parte do ser humano, mas não é todo ele. As relações econômicas fazem parte da humanidade, mas, não é em essência toda ela.

O resultado da costura pós-moderna, de indivíduos que estão afastados de seu criador, é o monstro de Frankenstein. Mas, não é esse o melhor caminho para se viver.

Como cristãos, o que fazer para não sermos engolidos pela cultura pop? Que paradigma usar? Como viver relacionamentos sólidos em tempos de liquidez? A resposta está na Trindade. C S Lewis em sua obra “Os quatro amores” traz duas definições de amor bem interessante, que pode nos auxiliar nesse caminho para fora da liquidez: a) Amor-dádiva e b) Amor-necessidade. O primeiro é voltado para o sacrifício e do serviço, enquanto que o segundo está pautando em suprir nossas carências e desejos.

O paradigma de amor apresentado por Lewis é a trindade. O relacionamento de interpretação e amor-dádiva entre Pai, Filho e Espírito Santo devem ser nossos parâmetros para amar, ser e viver. Ter nossa identidade atrelada à Cristo nos livra da fragmentariedade. O objetivo é discipular nossas afeições por meio da pericorese[4]. O Pai se doando ao Filho, o Espírito revelando o Filho, e o Filho exaltando o Pai, e de mãos dadas dançam eternamente essa perfeição de amor e doação à humanidade, convidando-nos de volta a entrar na dança dos três.

Cristo não é apenas o mediador entre Deus e os homens, mas entre mim e os meus semelhantes. Cristo nos impede de engolir o outro em nossos relacionamentos. Cristo nos livra da violência contra o outro, de modo a impedir que façamos de nossos irmãos alguém pessoas idênticas a nós. Cristo é a rocha que nos livra da liquidez e das confusões deste século. Cristo, há solidez no Cristo! Olhando para Ele não seremos abalados ou confundidos!





[1] Frankenstein ou o Prometeu Moderno, romance escrito no século XIX (1823) por Mary Shelley.

[2] Zigmunt Bauman foi um sociólogo e filósofo polonês. Ficou mundialmente conhecido por sua teoria da liquidez nas relações sociais. Suas principais obras são: Modernidade líquida e Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos.

[3] Personagem da trilogia Matrix, interpretado por Hugo Weaving. Era o principal inimigo do personagem principal, Neo (Keanu Reeves).

[4] Termo da teologia cristã encontrado na literatura patrística e em outras obras posteriores. Ele se refere à mútua interpenetração e coabitação das três pessoas da Trindade.