sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Cosmovisão I - Fragmentado

 

Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo.

Por isso também na Escritura se contém: Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido.

(I Pedro 2:5,6)


A cultura pop apresenta de forma artística os frutos de reflexões pautadas em filosofias e crenças que se quer passam por nossa cabeça quando sentamos no sofá para assistir um filme, ou quando ligamos o Spotify para ouvir uma música. A era pós-moderna trouxe consigo a fragmentariedade, a liquidez das relações e as profundas crises de identidade, surtos psicóticos, doenças desconhecidas e raras.

Frases como: “Vou te ensinar algo que aprendi, acho que não descobrimos quem somos de uma vez, acho que acontece durante a vida, JUNTAMOS AS PARTES...” / “Prefere imaginar uma relação com alguém ausente a criar laço com os que estão presentes?” / “Qual é o centro do mundo pra você? É o amor, eu acho.” não te fazem visualizar Frankenstein[1]?

Juntar fragmentos e formar um novo ser é a história do jovem médico Frankenstein e sua criação, o monstro. E talvez seja esse o resultado da costura identitária ensinada pela filosofia pós-moderna, o monstro de Frankenstein.  

Lembro de um programa que passava na Tv Cultura, direcionado para o público infantil-juvenil: “Tudo que é sólido pode derreter”. Bem baumeniano[2] e filosófico, mas simples o suficiente para pré-adolescentes absorverem a mensagem central da pós-modernidade: “Nada dura para sempre!” / “Tudo que é sólido se desmancha no ar.” / “Não se apegue, por que essa relação pode acabar amanhã.”.

O reverendo Pedro Lucas Dulci em seu curso “Questões de gênero – sexo, ciência e sociedade” afirma que a sociedade pós-moderna oferece fragmentos a seus integrantes, estes, por sua vez, pegam as partes que lhe são oferecidas e se montam afirmando: “Este sou eu”, mas a própria costura das partes permite mudanças e fluidez em arrancar uma parte e costurar uma nova.

 

As pessoas são atormentadas pelo problema da identidade. No topo, o problema é escolher o melhor padrão entre os muito atualmente em oferta, montar as partes do kit vendidas separadamente e apertá-las de uma forma que não seja nem muito frouxa (para que os pedaços feios, defasados e envelhecidos que deveria ser escondidos embaixo não apareçam nas costuras), nem muito apertada (para que a colcha de retalhos não se desfaça de uma vez quando chegar a hora do desmantelamento, o que certamente ocorrerá).

(Zigmunt Bauman)

 

Essa mesma flexibilidade tornou-se uma faca de dois gumes para o indivíduo, veja o que afirma Michael Goheen e Craig Bartholomew:

Nossa cultura é uma cultura em busca de sentido. A fragmentação que a pós-modernidade infringiu à nossa cultura e o seu solapamento da modernidade deixaram a cultura ocidental cada vez mais sem uma base sólida em que possa encontrar sentido para fundamentar suas práticas. A pós-modernidade reduziu a grande narrativa da modernidade a “um montão de imagens quebradas”.

 

Dulci afirma que essa fragmentação se deu a partir do contexto histórico da aceleração da vida, como também pelos reducionismos advindos das relações comerciais – lucro e déficit – que passaram a explicar o ser humano, e suas relações afetivas. O ser humano foi reduzido ao mercado e a seus afetos, ao que sente. O mercado tornou-se afetivo, e as relações viraram produtos que podem “facilmente” ser substituídos ou descartados, caso não satisfaça o cliente. Essa falta de solidez colocou o “Eros” em agonia e as demais relações interpessoais em mera reprodução de si mesmo, posto que o objetivo das relações tornou-se engolir o outro, reduzindo-o à si mesmo, como o agente Smith[3] .

 

Nos últimos tempos tem-se propalado o fim do amor. Hoje, o amor estaria desaparecendo por causa da infinita liberdade de escolha, da multiplicidade de opções e da coerção da otimização. Num mundo de possibilidades infinitas, o amor não tem vez. [...] Mas essas teorias sociológicas do amor não percebem que... não é apenas a oferta de outros outros que contribui para a crise do amor, mas a erosão do Outro, que por ora ocorre em todos os âmbitos da vida e caminha cada vez mais de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo. O eros aplica-se em sentido enfático ao outro que não pode ser abarcado pelo regime do eu. No inferno do igual, que vai igualando cada vez mais a sociedade atual, já não mais nos encontramos, portanto, com a experiência erótica.

(Byung-Chul Han)

 

Como bem afirma Dulci, todo reducionismo é empobrecedor, e impede o diálogo com as demais esferas da vida social. O ser humano, como é de saber comum, é integral e bem mais complexo que o mercado e suas afeições. A afetividade faz parte do ser humano, mas não é todo ele. As relações econômicas fazem parte da humanidade, mas, não é em essência toda ela.

O resultado da costura pós-moderna, de indivíduos que estão afastados de seu criador, é o monstro de Frankenstein. Mas, não é esse o melhor caminho para se viver.

Como cristãos, o que fazer para não sermos engolidos pela cultura pop? Que paradigma usar? Como viver relacionamentos sólidos em tempos de liquidez? A resposta está na Trindade. C S Lewis em sua obra “Os quatro amores” traz duas definições de amor bem interessante, que pode nos auxiliar nesse caminho para fora da liquidez: a) Amor-dádiva e b) Amor-necessidade. O primeiro é voltado para o sacrifício e do serviço, enquanto que o segundo está pautando em suprir nossas carências e desejos.

O paradigma de amor apresentado por Lewis é a trindade. O relacionamento de interpretação e amor-dádiva entre Pai, Filho e Espírito Santo devem ser nossos parâmetros para amar, ser e viver. Ter nossa identidade atrelada à Cristo nos livra da fragmentariedade. O objetivo é discipular nossas afeições por meio da pericorese[4]. O Pai se doando ao Filho, o Espírito revelando o Filho, e o Filho exaltando o Pai, e de mãos dadas dançam eternamente essa perfeição de amor e doação à humanidade, convidando-nos de volta a entrar na dança dos três.

Cristo não é apenas o mediador entre Deus e os homens, mas entre mim e os meus semelhantes. Cristo nos impede de engolir o outro em nossos relacionamentos. Cristo nos livra da violência contra o outro, de modo a impedir que façamos de nossos irmãos alguém pessoas idênticas a nós. Cristo é a rocha que nos livra da liquidez e das confusões deste século. Cristo, há solidez no Cristo! Olhando para Ele não seremos abalados ou confundidos!





[1] Frankenstein ou o Prometeu Moderno, romance escrito no século XIX (1823) por Mary Shelley.

[2] Zigmunt Bauman foi um sociólogo e filósofo polonês. Ficou mundialmente conhecido por sua teoria da liquidez nas relações sociais. Suas principais obras são: Modernidade líquida e Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos.

[3] Personagem da trilogia Matrix, interpretado por Hugo Weaving. Era o principal inimigo do personagem principal, Neo (Keanu Reeves).

[4] Termo da teologia cristã encontrado na literatura patrística e em outras obras posteriores. Ele se refere à mútua interpenetração e coabitação das três pessoas da Trindade.









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