sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Cântico dos cânticos - uma jornada de amor


 

PREFÁCIO

Esse texto foi escrito no final do ano passado, em parceria com meu amigo Pr. Lucas Emanuel. Tínhamos em vista o aperfeiçoamento da espiritualidade cristã e do relacionamento pessoal de cada cristão com a trindade. Espero que o leitor aprecie. 


INTRODUÇÃO

O livro de Cantares / Cântico dos Cânticos é um livro romântico, que expressa intimidade e desejo profundo entre seus amantes. É curioso como um livro com seu teor e estrutura poética se encontra bem no meio da Bíblia[1].

Esse livro pode (e deve) ser estudado pela perspectiva exegética natural, o relacionamento de Salomão com sua amada Sulamita, essa perspectiva é bastante usada nos encontros de casais, como também em aconselhamentos do mesmo segmento. Todavia, há uma perspectiva exegética de estudo e meditação que muitos de nós ignoramos; alguns a rejeitam de forma completa, outros de forma parcial, todavia é um dos prismas mais profundos da espiritualidade cristã e de nosso relacionamento com a pessoa de Jesus Cristo.

Nesse artigo iremos nos ater a essa segunda perspectiva do livro[2]. O relacionamento de Jesus com sua Igreja.

1.      Panorama Geral do livro

Cantares relata o processo de maturidade espiritual da noiva, os momentos de intimidade e plena felicidade, as respostas positivas e negativas ao noivo, os elogios trocados e o triunfo da noiva quando esta entra em parceria com seu amado e recostada sobre seu peito sobe do deserto.

Há dois temas principais abordados dentro desse livro: 1) As emoções de Deus pela noiva e 2) O primeiro mandamento. Há uma guerra pela nossa identidade por isso precisamos estudar e nos aprofundar dessas verdades.

Segundo Mike Bickle[3]: “Deus nos criou com o desejo de ser fascinado e assombrado, cheio de maravilha e maravilha. Nós não podemos remover nosso anseio por fascinação ou nos arrependermos dela. É uma parte significativa do nosso design criativo. Nós iremos satisfazê-lo em Deus ou nas trevas.”.

Essa verdade é expressa em várias partes das escrituras. Isaías profetizou que o Espírito enfatiza a beleza de Jesus na geração de Seu retorno (Is 33:17); Davi descobriu que somente UMA coisa é necessária, viver todos os dias para contemplar  a BELEZA do Senhor (Sl 27:4); Paulo abriu mão de todas as coisas quando contemplou a beleza de Jesus! Jane Guyon não se importou em viver encarcerada por alguns anos por ser uma contempladora da beleza de Cristo, através das escrituras. Hudson Taylor, pai das missões para interior da China, despejou sua vida como oferta aos pés do noivo ao contemplar a beleza do Senhor!

Nós também, podemos viver como esses homens e mulheres viveram se vermos o que eles viram! Ouso afirmar, juntamente com Bickle que o livro de Cântico dos Cânticos foi deixado com esse propósito, desfrutarmos e sermos fascinados pela beleza de Deus!

Sempre que a visão celestial vem, ela sempre destrói a visão terrena. Você nunca mais poderá ser o mesmo, nunca poderá fazer o que planejou fazer. Ela tanto muda sua direção completamente como muda o próprio caráter daquilo com que você está envolvido. É tão drástico, tão revolucionário. (Stephen Kaugn)

O Espírito Santo nos acompanha nessa caçada pela beleza de Jesus. Os sentimentos e pensamentos do Senhor são revelados a nós por meio dessa conexão com a trindade. E durante esse processo acontece conforme afirmou Hudson Taylor: A beleza do noivo será vista na noiva!

2.      A busca de Deus pelo nosso coração[4]

Antes mesmo da criação do homem, fomos projetados para estarmos em comunhão e plena harmonia com a trindade. O desejo furioso de Deus em nos ter para si é a razão de toda a redenção e eternidade.

Deus tem uma herança em nós e queremos entrar em parceria com Ele nessa herança. E por causa disso a conquista de nosso coração é fundamental.

A jornada na noiva se inicia em ser fascinada por Ele – o fascínio é fundamental, como já afirmamos – é por causa disso que a vemos iniciar o diálogo de amor: Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho. (Cânticos 1:2)[5].

Ariadna Oliveira afirma que os beijos de Jesus são como tatuagens feitas em nosso espírito. Quando a noiva pede para ser beijada com os beijos da boca do amado ela está apontando para o que está na boca do amado, a palavra. Em Apocalipse 19:15 que da boca de Jesus saia uma espada afiada; João 1 fala que ele é a palavra, Hebreus 4:12 mostra que essa espada é capaz de revelar os desejos mais íntimos do nosso coração e transformá-los (Rm 12:2).

O mundo já não pode mais ser para ela o que já foi; a noiva aprendeu a amar ao seu Senhor, e nenhum outro relacionamento que não seja Ele pode satisfazê-la. Suas visitações podem ser ocasionais e breves, mas são preciosos momentos de deleite. Esses momentos são lembrados com prazer nos intervalos, e a repetição deles é muito desejada. [...] O noivo está esperando por ti todo o tempo. [...] Tome a correta posição diante Dele, e Ele estará mais do que pronto, mais do que contente em satisfazer teus mais profundos anelos e todas as tuas necessidades. [...] (Hudson Taylor)[6]

É nesse processo de contemplação e lapidação que nos encontramos fascinados, apaixonados pelo noivo.

3.      Como enxergamos nossa identidade

No primeiro capítulo do livro mostra claramente o efeito dos beijos do amado, em como a noiva se via (Ct 1:5): Eu sou a flor que nasce na planície de Sarom, o lírio que cresce no vale. (Cânticos 2:1)[7].

Nós somos belos e sinceros, é assim que Deus nos vê! O inimigo sempre traz acusações de que somos fracassados e desqualificados, mas essa não é a verdade a respeito do que Deus pensa sobre nós! Ele enxerga o nosso fraco ser, e Ele nos diz: O seu pecado não te define! Eu te defino! Olha para mim!

Quando a noiva começa a ter revelação de quem ela é, ela começa a declarar isso! E essa revelação vem a medida que a noiva contempla. Ela vê a beleza Dele, e se vê bonita!

4.      Ele nos convida descansar na obra finalizada da cruz (Ct 2:3-5)

Quando descubro que sou amado não pelas minhas medidas (padrões) consigo me posicionar com confiança. A confiança no amor que Ele sente por mim me leva a sentar, alimentar Dele, e ser fortalecido! Esse é o perfeito amor que lança fora todo medo de nossos corações, não o amor que sentimos por Ele, mas o amor que Ele sente por nós!

É firmado nisso que posso entender e declarar: EU SOU O DELEITE DO AMADO! Quando encontramos esse lugar em Deus não queremos sair dele, pois é delicioso. Enquanto descansamos debaixo da macieira, Ele está pulando sobre os montes (problemas) sem nenhum esforço.

5.      Jesus convida a noiva a avançar com Ele.

Depois que nossa identidade está firmada e temos a certeza do Seu amor o noivo nos convida a fazer parceria com Ele (Ct 2:10-13). Ele desafia a noiva a sair da zona de conforto para leva-la a lugares mais altos com Ele.

Essa é uma postura de coração, onde dependeremos mais dele e nossa fé crescerá, onde alcançaremos um padrão mais elevado de maturidade espiritual.

Mas, a noiva dá uma resposta negativa ao Senhor (Ct 2:17) – ela diz: vá você, enquanto te espero aqui nesse lugar confortável. Volte para perto de mim amado!

Enquanto ela mantém sua própria vontade e o controle de suas possessões, tem de se contentar em viver de seus próprios recursos; ela não pode reivindicar os Dele. [...] O REAL SEGREDO DE UMA VIDA INSATISFEITA ESTÁ, MUITO FREQUENTEMENTE, EM UMA VONTADE NÃO RENDIDA. (Hudson Taylor – GRIFO NOSSO)

Então, ela experimenta a disciplina em amor de Jesus. Porque ele tem compromisso com a maturidade da noiva! A disciplina não é uma forma de rejeição do noivo pela noiva, mas é uma forma de mostrar o quanto Ele a ama para deixa-la naquele nível de relacionamento (Ct 3:1-4).

Percebe que a disciplina é a ausência Dele? Como Ele sabe que a noiva não suportará viver sem sua presença – porque nesse nível ela já experimentou tanto Dele que realmente não terá forças de viver sem Ele – então Ele se ausenta, para que ela obedeça e vá encontra-lo.

Fr. Pedro de Paulo di Bernardino traz uma importante ressalva sobre os efeitos das disciplinas espirituais sobre nosso eu interior: A ascese da mortificação e da penitência é importante para libertar a alma e o coração das dependências que os ligam às realidades terrenas como se não se pudesse passar sem elas. Muitas vezes são coisas pequenas, mas que impedem voar livremente para Deus.[8]

Ela encontra quem ela ama quando sai do lugar de conforto. O noivo a havia chamado para as montanhas, e no texto mostra que ela vai até a cidade (Ct 3:1-4) e tem um contato novamente com o noivo. Ela está respondendo, mas ainda está em sua zona de conforto. Ela ainda tem reservas, e não entregou tudo por imaturidade.

Que nossa oração e disposição de coração sejam semelhantes aos de Elizabete da Trindade: ...que o mundo não me impeça de ir a Ele, que as futilidades dessa terra não me ocupem, que eu não me apegue a elas!

6.      Os elogios do noivo (Ct 4:1-5)

Nessa sequência de versículos o noivo começa a descrever a beleza dela em oito atributos de caráter. E todas essas comparações (coerentes com o padrão de beleza daquele contexto) para dizer: você já me agrada! Mesmo que os passos foram pequenos e avanço não foi total, já estou orgulhoso de você!

E mais uma vez baseado nesse perfeito amor que nos constrange, a noiva responde de forma completa e se dispõe sem reservas (Ct 4:6).

A noiva temerosa não pode se desfazer não pode se desfazer totalmente de seus receios; mas a falta de paz e o anelo tornam-se insuportáveis, e ela resolve render-se totalmente, e ai poderá segui-lo integralmente. Ela submeterá todo o seu ser a Ele, coração e força, influência e possessões. Nada pode ser tão insuportável quanto a Sua ausência! Se Ele a guiar para outro Moriá, ou até mesmo a um calvário, ela o seguirá. [...] Quando o coração se submete, então Jesus reina. E quando Jesus reina, HÁ DESCANSO!! (Hudson Taylor)

7.      A resposta da Noiva

Na continuação do texto percebemos que o convite de parceria permanece e a exaltação dos frutos produzidos por sua amada dissipa todo medo do porvir, então a noiva declara: Levante-se, vento sul! Soprem em meu jardim e espalhem sua fragrância por toda parte. Entre em seu jardim, meu amor, e saboreie os melhores frutos. (Ct 4:16)

Após essa declaração Ele se apropria dela (Ct 5:1) e logo em seguida vem o momento de provação (Ct 5:2), o noivo a convida para participar de seus sofrimentos. Ele está perguntando: “Você vai passar comigo por isso? Quando as coisas não estiverem dando certo, você vai continuar sendo meu jardim particular?”.

Essa é a beleza do nosso rei, Ele deseja que adentremos nesse lugar de sofrimento, porque ele sabe o que isso vai produzir em nós! Como disse Peterson[9] a oração no Espírito Santo é quando Cristo ora em nós! O lugar do sofrimento, onde participaremos das aflições de Cristo começa no lugar de oração, é ali, como diz Peterson que seremos afetados.

John Hyde[10] foi um intercessor, que participou das aflições de Cristo. O apelo dele para sua geração foi por agonia, lágrimas e fervor. Esse é o caminho que a noiva do Senhor precisa trilhar.

Michael Duque Estrada em seu livro Cultura de Oração[11] traz uma visão do coração de Deus, como uma chaga aberta. Uma ferida não curada, exposta nas mazelas desse mundo – é a mulher violentada, a criança abusada e a infância vendida. Esses são os lugares onde o amado de nossas almas está, e Ele nos convida a estarmos em parceria com Ele.

Sobre os frutos sofrimento e martírio, Ariadna Oliveira[12] ressalta:

O silêncio de um cristão obediente não significa o seu fim, nem mesmo o último ato nutrido por uma frustração ou desesperança, mas uma porta escancarada que põe termino a uma espera! [...] Enquanto nossa visão opaca e limitada afirma ser isso insano, o silêncio oferecido a Deus em obediência, a morte interior e a renúncia do eu formam a mais legítima oração que com poder rasgam o temporal e gera, lá na eternidade, um silêncio ainda maior (Ap. 8:1-4).

O caminho de maturidade da noiva, a resposta, mesmo que tardia em participar dos sofrimentos de Cristo (Ct 5:7), o testemunho dela ante ao restante do corpo (Mulheres de Jerusalém) a respeito de quem é esse amado e o que ele tem de tão especial, a fazem se tornar irresistível ao noivo e Ele já não pode negar-lhe mais nada (Ct 56:5).

Estar em parceria fala de comunicar ao restante do corpo aquilo que está no coração do noivo (e no coração de Deus). Bob Sorge usa a expressão manifestar a voz para essa definição.

Manifestar a voz exige a solidão e abandono do deserto. Deus levará alguns de seus servos para o deserto a fim de prepara-los com uma mensagem [...] Para receber essa mensagem, porém, é preciso um grau incomum de consagração aos propósitos de Deus enquanto ele os guia ao deserto. [...] Deserto é, por definição, um lugar habitado por pouca gente, sobretudo porque as condições não são propícias para o modo de vida diário da maioria das pessoas. Trata-se, portanto, de um lugar de solidão, de confinamento imposto, sem NENHUMA COMODIDADE, um lugar de ostracismo, onde o ambiente é inóspito. É o lugar em que Deus se encontra com seu servo ou sua serva. É a reunião de apenas duas pessoas para se realizar uma profunda formação espiritual. É ONDE DEUS DÁ À PESSOA UMA MENSAGEM FORMADA COM BASE NA VIDA DELA, e não em sua biblioteca.

Por fim ela sobe vencida do deserto, recostada sobre seu amado. Ela está em parceria com Ele! O noivo responde ao pedido dela por exclusividade: “Eu vou colocar meu amor como um selo de fogo! Ela é minha! Exclusivamente minha!” (Ct 8:6).

E assim, a beleza do noivo será vista na noiva. (Hudson Taylor)

 

P.S.: Um coração apaixonado e totalmente envolvido produz poesias como a de George Matheson:

Torna-me um cativo, Senhor,

E, então, livre serei,

Força-me a render minha espada,

E conquistador serei. [...]

Minha vontade não é minha própria,

Até que a tornes Tua;

Se ela subisse ao trono de um monarca,

Ela teria de resignar a sua coroa.

Minha vontade só fica firme, em meio à estrondosa luta, quanto em Teu peito se apóia e descobre sua vida em Ti.

 

Só um coração rendido e saudado, consegue admitir como Agostinho, que tarde amou o Senhor. Todos os dias, horas, minutos são insuficientes e reconhecemos que poderíamos amá-lo mais e por mais tempo! Todavia, Ele vê o nosso fraco ser e nos espera todos os dias com a mesma intensidade de se revelar e nos amar!

 



[1] A estilística literária dos hebreus tem uma característica peculiar de colocar no centro do texto (narrativa / poema..) aquilo que é o principal. É sabido que o cânon bíblico foi organizado bem depois e em um contexto cultural diferente da cosmovisão judaica, mas acredito em uma divina providencia de preservação também da estilística. Todo o texto quanto contexto e estilo literário foram inspirados por Deus.

[2] Te convido, leitor, a estar com sua bíblia aberta no livro de Cantares, durante toda a leitura.

[3] Fundador e pastor da International House of prayer – conhecida mundialmente como IHOP / no Brasil FHOP.

[4] Baseado em uma das aulas ministrada pela Blaire Fraim, na Escola de Verão da FHOP – Floripa-Brasil.

[5] Versão: ACF – Almeida Corrigida e Fiel.

[6] Cântico dos Cânticos – Editora dos Clássicos.

[7] Versão: NVT – Nova Versão Transformadora.

[8] Ressalto a penitencia com conotação de abster-se de coisas que nos dão prazer. A palavra penitência no contexto monástico está relacionada não somente com castigos físicos, mas principalmente ao jejum.

[9] Peterson sobre a vida de oração de John Hyde – livreto da editora Impacto.

[10] Seus biógrafos afirmam que Hyde morreu com o coração deslocado (do lugar normal) de tanto orar e agonizar pelos perdidos.

[11] Editora Impacto

[12] De volta para casa – editora Impacto


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