quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Advento e Natal

 

Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, e o governo está sobre seus ombros. E Ele será chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus poderoso, Pai Eterno, Príncipe da paz. (Isaías 9:6)


Local: Santuário Nacional de São João Paulo II - EUA

O Advento é o período que precede o Natal. A partir do dia 01 de Dezembro leituras específicas são feitas até o dia 25, o dia em que a cristandade celebra a chegada do Messias, o nascimento de Jesus. Os cristãos, de tradição evangélica, ficam perdidos quando falamos a respeito do Advento porque perdemos o costume de seguir o calendário litúrgico em nossos cultos e devocionais, não sabemos nem mesmo do que se trata esse calendário. A palavra advento vem do latim adventus que significa chegada[1].

O calendário cristão tem início com o Advento e as celebrações do nascimento de Jesus, depois temos a quaresma, páscoa e demais celebrações no decorrer do ano. Esse calendário possui uma rotina de leitura da bíblia para a semana e cultos de domingo. Essa tradição, ainda seguida por católicos e alguns protestantes, tem sido resgatada nos últimos tempos pela cristandade de diversas tradições. Estudar a história da Igreja, talvez seja um dos principais motivos desse despertar. Despertar este que tem nos dado uma nova perspectiva de nossas raízes, reconhecendo as preciosidades na tradição cristã.

O Advento é um momento de espera no qual nossos corações anseiam pela chegada do Messias. É por isso que essa celebração faz referência ao passado, futuro e presente. Advento da redenção, encarnação-morte-ressurreição de Cristo; Advento da glorificação, a segunda vinda de Jesus e a glorificação de nossos corpos; e o Advento da santificação, a presença do Espírito Santo em nosso meio[2].

As leituras propostas pelo calendário do Advento nos faz lembrar da esperança de nossa salvação, aquecendo nossos corações nos vinte e quatro dias que precedente a natividade. O Rei que nasceu indefeso como um bebê, viveu, morreu e ressuscitou, voltará para governar as nações em amor.

 

Porque celebrar o Advento e o Natal?

Talvez você nunca tenha saído do Brasil ou nunca tenha lido a revista (site) da missão Portas Abertas, mas uma realidade presente em muitos países do mundo hoje é a perseguição de cristãos e suas celebrações. Países fechados por conta de sua política de governo, como China e Coréia do Sul, possuem uma perseguição aberta a qualquer tipo de religião. Todavia, países que se declaram islâmicos[3], e que possuem suas lideranças ligadas à grupos que apoiam ao islã, perseguem e matam cristãos. Nesses países é muito difícil você ver celebrações públicas do Natal. Isso porque cultos públicos são proibidos; confessar a fé em Jesus como Cristo é uma declaração de morte. 

Por mais que o Ocidente tenha se desviado do propósito dos cristãos dos primeiros séculos, nas celebrações do Natal, concentrando-se em decorações, comida e muito consumo, temos um período do ano onde podemos falar abertamente sobre nosso Messias. Temos um período no ano em que podemos usar as histórias da tradição cristã, como a de São Nicolau, para mostrar que a luz brilhou em meio à nossa escuridão!

E dentro dessa perspectiva, o período do Advento nos ajuda a preparar nosso coração, a direcionar nossos afetos para o que realmente importa nessas festas de fim de ano. Não estou dizendo que devemos nos lembrar de Jesus e ansiar por seu retorno somente durante esse período do ano, mas porque não usar essa oportunidade para começar, para reascender a chama da paixão por Jesus!? Por que não trazê-lo para nossa rotina e nos surpreendermos com Sua presença em nossa família!?

 

Quem foi São Nicolau?

Nicolau, conhecido como Nicolau de Mira (atual Turquia), foi um dos pais da Igreja que nasceu na metade do século III. Foi um servo dedicado ao Senhor e Sua missão. Foi perseguido e preso durante o governo de Diocleciano[4], por não negar sua fé em Jesus. Durante o primeiro Concílio de Niceia (325), organizado pelo imperador Constantino, Nicolau ficou irado com Ário e o esbofeteou em plena reunião. Ário era diácono de Alexandria, e foi excomungado da Igreja, durante este mesmo Concílio por ter propagado uma doutrina falsa a respeito de Deus, a qual negava a Trindade. Após esse acontecimento Nicolau perdeu seu bispado em Mira, todavia, continuou amando as crianças e cuidando dos necessitados.

Ele perseverou em cuidar do rebanho de Jesus. A data de seu falecimento, 6 de Dezembro[5] de 350, ficou muito conhecida nas igrejas do Oriente, onde celebra-se o dia de São Nicolau. A figura desse santo inspirou mais tarde a criação do Papai Noel no Ocidente. É claro que a biografia desse santo homem de Deus se diluiu nos mitos criados pela cultura Norte Americana. Mas, isso não desmerece a história original que perpassou os séculos da era cristã.

 

A árvore de Natal

Outro símbolo muito presente na Natividade é o pinheiro decorado com bolas e luzes. A história é a seguinte, por volta do ano 723, um grupo de missionários estava percorrendo a Alemanha durante a véspera de Natal, entre eles estava Bonifácio. Quanto estavam próximos à um vilarejo na Turíngia, na qual os aldeões realizavam sacrifícios humanos, perceberam que uma criança estava prestes a ser sacrificada aos pés de um carvalho (O carvalho do trovão[6]). Então, no momento em que o carrasco estava preste a levantar o machado para matar a criança, Bonifácio exclamou levantando seu báculo: Aqui está o carvalho do trovão, e aqui está a cruz de Cristo que quebrará o martelo do falso deus, Thor. (SEWELL Jr., 2014)

Quando o machado desceu para matar a criança, Bonifácio colocou a cruz do seu báculo como proteção, e o machado de pedra se quebrou. O missionário Bonifácio aproveitou para apresentar o evangelho para aquele povo: Ouvi, filhos da floresta! Nenhum sangue fluirá esta noite a não ser a pena que tenho tirado do seio de uma mãe. Pois esta é a noite de nascimento do Cristo, o filho do Todo-Poderoso, o salvador da humanidade. Mais justo é ele que Baldur, o belo, maior que Odin, o sábio, mais gentil que Freya, o bom. Desde que Ele veio, o sacrifício terminou. O escuro Thor, em quem vocês tem chamado em vão, está morto. [...] E agora, nesta noite de Cristo, vocês começarão a viver. (SEWELL Jr., 2014)

O missionário, então, desferiu um grande e único golpe de machado contra o carvalho do trovão. O povo do vilarejo esperava que Thor o destruísse por tamanho sacrilégio. Contudo, o que aconteceu foi que um grande vento soprou e arrancou aquela árvore até suas raízes. Após toda a comunidade ficar assustada com o acontecido, Bonifácio completou: Esta pequena árvore, uma criança da floresta, será uma árvore sagrada esta noite, é a madeira da paz. É o sinal de uma vida sem fim, pois suas folhas são sempre verdes, veja como aponta para o céu. Que isso seja chamado de a árvore do filho de Cristo. Reúnam-se sobre ela, não na floresta selvagem, mas em suas próprias casas; ali não abrigará atos de sangue, mas dons amorosos e ritos de bondade. (SEWELL Jr., 2014)

Com a madeira daquela árvore Bonifácio construiu uma capela, o povo daquele vilarejo converteu-se a Jesus e por toda a Alemanha espalhou-se a tradição das árvores de Natal, mostrando que nenhuma criança precisava ser sacrificada, pois Jesus morreu em nosso lugar. Um símbolo de morte foi transformado em símbolo de vida e esperança. Lutero que já conhecia a tradição, trouxe o costume para o protestantismo.

 

Conclusão

Temos uma tradição cristã rica e muito bem fundamentada nas escrituras. Por mais que os símbolos e datas comemorativas possam se coincidir com celebrações no paganismo, a história da Igreja está ai para nos mostrar que esses símbolos foram ressignificados. O evangelho é o poder de Deus para todas as culturas. A luz brilhou dissipando toda escuridão. Jesus, o Deus encarnado é esperança para todo aquele que Nele crê. Feliz advento! Feliz Natal!

 



[1] Advent: The Season of Hope – Tish Harrison Warren

[2] Advent: The Season of Hope – Tish Harrison Warren

[3] Hoje aproximadamente 22 países na Ásia e Norte da África. Site do Portas Abertas: https://portasabertas.org.br/lista-mundial/paises-da-lista

[4] Um dos imperadores romanos que mais perseguiu cristãos.

[5] No calendário Oriental esse dia é 19 de Dezembro.

[6] Em homenagem ao deus Thor (deus trovão na mitologia Nórdica).


terça-feira, 31 de outubro de 2023

Pontos positivos e negativos da Reforma Protestante



Alguns povos confiam em carros de guerra, 
outros, em cavalos, mas nós confiamos 
no nome do SENHOR, nosso Deus.
(Salmo 20:7)


Édouard Debat Ponsan

Falar de Reforma Protestante é falar das várias mudanças que o mundo Ocidental sofreu. Temos um movimento que literalmente abalou a estrutura econômica, social e religiosa de muitos países da Europa e deram origem a novos países como a Nova Inglaterra (Estados Unidos da América). Muitos benefícios são inegáveis e devemos menciona-los aqui, como a invenção de Johannes Gutenberg que revolucionou os meios de produção e distribuição de livros. A prensa de Gutenberg foi fundamental na difusão da Bíblia no alemão e posteriormente para outras línguas.

Outro ponto positivo importante foi a consolidação e enriquecimento da língua alemã, por meio da tradução da Bíblia no alemão liderada por Martinho Lutero. João Calvino teve grande influência religiosa e política em Genebra, contribuindo para uma valorização moral do trabalho e a prática da poupança (acúmulo de capital) como caminho para o enriquecimento.

Além de todas essas mudanças sociais, a Igreja precisava voltar a olhar para Jesus através das escrituras. Sua liderança estava corrompida pela sede de poder e riquezas, enquanto os fiéis pereciam por falta de conhecimento e compaixão. Os escritos dos reformadores e reformadoras foram de suma importância para que houvesse luz na escuridão que a população da época estava imergida. Escuridão esta, que o iluminismo e o humanismo contribuíram para disseminar.

Mesmo ante a todos os benefícios citados a cima é valido ressaltar por meio do famoso jargão popular: “Nem tudo são flores!”. Esses mesmos santos que foram usados para trazer luz à escuridão, também contribuíram para a disseminação do ódio e o desencadear de muitas guerras dentro da própria cristandade. Os nossos heróis tinham pés de barro, às vezes eram santos e outras vezes opressores[1].  

 

Revoltas, perseguições e Antissemitismo

A Revolta dos camponeses na Alemanha, entre 1524-1525, é um exemplo de como os escritos de Lutero motivaram camponeses a entrarem em guerra contra seus príncipes. A questão é que foi um verdadeiro massacre, posto que, tratavam-se de camponeses completamente despreparados para um confronto militar contra uma parcela rica da população que possuíam seus próprios exércitos. A atuação de Lutero aqui foi considerada nebulosa, tendo em vista que seus escritos pendiam para os dois lados do conflito[2].

Outro ponto controverso a ser ressaltado na vida desse mesmo reformador, foi mais um de seus escritos, este concluído no final de sua vida: Sobre os judeus e suas mentiras[3]. Essa triste obra de Lutero contém severas críticas ao judeus e infelizmente influenciou outros teólogos[4] que mais tarde defenderam abertamente ao nazismo. Esses eram os pés de barro do nosso tão aclamado reformador alemão. É fato que Lutero sempre trabalhou e orou pela conversão dos judeus, todavia, não há dúvidas de que essa sua obra foi um erro.

 

Guerras internas e mais divisões

Como bem afirmou o ministro Marcondes Soares, não era o intuito de Lutero que a Igreja do Senhor Jesus Cristo se dividisse em 30 mil denominações diferentes. Não estavam nos planos do reformador nem mesmo desligar-se da Igreja Católica Romana, mas sim que houvessem mudanças no ensino e um retorno às escrituras.

Os anos que sucederam à Reforma foram de muitas guerras e perseguições de católicos contra luteranos, anglicanos contra católicos, luteranos e anglicanos contra anabatistas e assim muitos outros tipos de disputas religiosas que se misturavam com interesses políticos e econômicos. Noites sangrentas como a noite de São Bartolomeu, também conhecida como o massacre dos huguenotes[5], em 24 de agosto de 1572, que tirou a vida de mais de 5.000 pessoas. O resultando desse massacre foi o exílio de mais de 300.000 franceses huguenotes.

Comunidades como a dos Morávios (seguidores de John Huss), formada por irmãos que foram expulsos da Boémia, foram exemplos de refugiados que foram recebidos em outros países e acolhidos em propriedades como a do Conde Zinzendorf. As guerras e perseguições religiosas perduraram por séculos.

 

Mulher casada como padrão de feminilidade bíblica

Antes da Reforma Protestante as mulheres podiam trilhar caminhos diferentes e viverem para a glória de Deus, podiam escolher diferente e ainda assim serem consideradas piedosas e tementes à Deus. A dra. Barr[6] afirma:

As mulheres sempre foram esposas e mães, mas foi a partir da Reforma Protestante que ser esposa e mãe se tornou o “padrão ideológico de santidade” para as mulheres. Antes da Reforma as mulheres podiam ganhar autoridade espiritual rejeitando sua sexualidade. A virgindade lhes dava autonomia. As mulheres se tornavam freiras e faziam votos religiosos e algumas, como Catarina de Siena e Hidegarda de Bingen, descobriram que suas vozes ressoavam com a autoridade dos homens. Na verdade, quanto mais distantes as mulheres medievais ficavam do estado civil de casada, mais próximas elas ficavam de Deus. Após a Reforma, o oposto tornou-se realidade para as mulheres protestantes. Quanto mais se identificavam como esposas e mães, mais devotas se tornavam.

Infelizmente muitos reformadores não incentivaram as mulheres como pregadoras, teólogas e evangelistas, negando assim o sacerdócio universal de todos os crentes[7]. Mas, apesar de todos esses equívocos tivemos mulheres que foram fundamentais durante o período da Reforma Protestante, como Margarida de Navarra, Marie Dentière, Catarina Zell e muitas outras. Mulheres que propagaram a salvação pela graça mediante a fé, que usaram seu poder e riquezas para proteger irmãos anabatistas e protestantes de diversas nacionalidades.

 

Conclusão

O que a Reforma Protestante nos ensinou? Como também os avivamentos na história da Igreja? Que homens e mulheres são apenas homens e mulheres, todos sujeitos a erros e limitações. Tanto a narrativa bíblica como a história da Igreja nos reforçam que não somos os personagens principais da história da redenção. Somos vasos de barro que carregam a excelência do poder, que é o próprio Deus. Nossos heróis e heroínas são e vão continuar sendo de extrema importância para o fortalecimento de nossa fé, vamos aprender com eles, com seus erros e acertos, olhando sempre para Cristo, o autor e consumador da nossa fé.

Pois é olhando para Ele que nunca seremos abalados ou confundidos. É olhando para Ele que teremos a certeza de que Ele é! Nele colocaremos nossa confiança e esperança! Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua misericórdia e da tua fidelidade. Por que diriam as nações: Onde está o Deus deles? No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada. (Salmo 115:1)

 



[1] Opressores e santos: uma análise do bem e do mal na história cristã – John Dickson, editora Thomas Nelson Brasil, 2023.

[2] A guerra dos camponeses: a mediação de Lutero sob discussão – Tarcísio Vanderlinde, revista Alamedas.

[3] Tradado escrito em 1543.

[4] Leia mais no texto: https://mentes-renovadasmay.blogspot.com/2021/04/hegel-teologia-liberal-alema-e-os.html

[5] Nome dado aos protestantes franceses, em sua maioria calvinistas (seguidores de João Calvino).

[6] A construção da feminilidade bíblica – Beth Allison Barr, Thomas Nelson Brasil.

[7] Reformadoras – Rute Salviano. 



domingo, 24 de setembro de 2023

O papel da mulher na edificação da casa de Deus

Eu canto a canção das santas de Deus: Pacientes, constantes em fé e coragem. Viveram, lutaram, reinaram e serviram, Jesus foi para elas o Mestre e Senhor. E uma foi sábia, a outra rainha; e algumas, seus nomes, a história ocultou. São santas, queridas, amadas de Deus, e, Deus permitindo uma delas serei.

(Paráfrase de Simei Monteiro do hino 712 do hinário Metodista / Fonte: Vozes femininas nos avivamentos – Rute Salviano)


Fonte: Instituto Humanitas Unisinos

Há alguns anos atrás liderei um grupo de meninas em minha igreja. Nos reuníamos para orar juntas e aprender mais a respeito de Jesus através das escrituras. Durante esse período li muitos materiais sobre o papel da mulher na Igreja, padrões e expectativas, tanto para as casadas quanto para as solteiras. Praticamente todo o material que tinha acesso na época exaltavam as mulheres como mães, filhas, esposas e boas donas de casa. Era interessante, pois nunca alcancei esse padrão. E fazendo uma análise daqueles anos até o presente momento, muitas mulheres, amigas e colegas de ministério não correspondem à essas expectativas.

A realidade é bem diferente do que muitas vertentes teológicas pregam a respeito do que seria esse padrão ideal de feminilidade bíblica. Temos muitas mulheres casadas, mas, que não são mães; mulheres que não tem marido, mas são boas mães; aquelas que não são boas donas de casa, mas amam e se compadecem do órfão e do necessitado; mulheres que são divorciadas, mas mantém uma vida santa de amor total ao Senhor. E o que falar das viúvas que permanecem assim, dedicando seu tempo à evangelização e cuidado dos novos crentes; das avós que estão no papel de mãe dos netos, e das solteiras que devotam suas vidas e tempo ao Senhor.

São muitas “exceções” se queremos afirmar que a regra é casar-se e ter filhos. São muitas pessoas, importantes na missão de Deus, para as colocarmos em uma categoria de subalternidade e “maldição”. Se olharmos bem para o texto bíblico, principalmente os escritos neotestamentários e os registros históricos da Igreja dos primeiros séculos vamos encontrar um padrão diferente de feminilidade. Vamos encontrar um padrão diferente até mesmo na tão estigmatizada Igreja da Idade Média.

 

As discípulas de Jesus na Igreja primitiva

Talvez não prestemos atenção quando lemos os evangelhos, mas é impressionante o número de vezes em que mulheres são citadas nos relatos evangelísticos. Entre essas muitas citações temos Jesus conversando em público com muitas delas (João 4:7-29; Marcos 5:25-34), temos o nome de cinco mulheres, citadas por Mateus, na genealogia do Messias e muitas que financiaram o ministério de Jesus. Discípulas que o acompanharam durante seus três anos e meio de ministério, incluindo sua crucificação (Marcos 15:40-41) e ressureição (Marcos 16:1-2 e 9). O mesmo acontece nas cartas paulinas, quando o apóstolo agradece seus colaboradores, muitas mulheres são citadas como obreiras, anfitriãs, diaconisas e mantenedoras do apóstolo.

Um exercício interessante que minha colega de estudos teológicos nos recomendou, por meio de um PodCast[1], é sublinhar todas as vezes que as mulheres aparecem na narrativa dos evangelhos. Vamos perceber uma verdade que talvez tenhamos deixado passar nas leituras anteriores, Jesus tinha discípulas! Muitas mulheres o seguiam e foram comissionadas a ir e fazer discípulos e discípulas de Jesus, de todas as etnias da Terra. Uma das biografias mais interessantes, preservada pela tradição Católica, é a de Maria de Betânia. Segundo essa tradição, Maria e sua irmã Marta foram missionárias na França. Temos algumas considerações feitas pela Doutora Beth Allisson Barr[2]:

Desde o século VII, Marta de Betânia tem sido frequentemente identificada como a irmã de Maria Madalena — a santa feminina mais conhecida no mundo medieval (perto apenas de Maria, mãe de Jesus). Só no século XVI Maria Madalena começa a ser separada de sua identificação medieval como irmã de Marta, a mulher pecadora possuída por sete demônios e a mulher arrependida com o vaso de alabastro. […] Embora possamos duvidar da exatidão histórica da viagem missionária de Maria à França, os cristãos medievais não duvidavam. Como um monge cisterciense escreveu: “Assim como ela foi escolhida para ser a apóstola da Ressurreição de Cristo e a profeta de seu mundo [...], ela pregou aos incrédulos e confirmou os crentes em sua fé”.

 

Quando que o casamento tornou-se padrão ideal de feminilidade bíblica?

O casamento e a maternidade tornaram-se padrões de feminilidade bíblica com a Reforma Protestante, principalmente por meio de Martinho Lutero. Segundo a historiadora Beth Allisson Barr, durante a Idade Média haviam outras categorias de serviço que as mulheres poderiam dedicar-se, um tipo que era considerado superior até mesmo ao status do casamento e da maternidade.

A virgindade lhes dava autonomia. As mulheres se tornavam freiras e faziam votos religiosos e algumas, como Catarina de Siena e Hidelgarda de Bingen, descobriram que suas vozes ressoavam com a autoridade dos homens. Na verdade, quanto mais distantes as mulheres medievais ficavam do estado civil de casada, mais próximas elas ficavam de Deus. Após a Reforma, o oposto tornou-se realidade para as mulheres protestantes. Quanto mais se identificavam como esposas e mães, mas devotas se tornavam. [...] O mundo da Reforma elevou o casamento ao estado ideal para as mulheres, e os evangélicos, que se identificam fortemente com o legado da Reforma [...] fizeram o mesmo.

Rute Salviano em seu livro Teólogas da Idade Medieval[3] traz a biografia de muitas dessas mulheres que antes de qualquer carreira, ministério ou função, eram discípulas de Jesus. Servas que renunciaram seus próprios desejos e planos para abraçar a cruz e a missão de Deus.

 

Qual seria o padrão bíblico de feminilidade?

O padrão de feminilidade bíblica é o de Maria de Betânia (Lucas 10: 39; João 12:3-8), estar aos pés de Jesus e aceitar seu discipulado com toda mente, coração e força. Esse é o padrão, tanto para homens como para mulheres. Antes de qualquer função, somos chamadas para ser discípulas. Muitas serão chamadas para ser esposas, mães, donas de casa, mas também terão outras que serão chamadas para o celibato, e isso não é maldição. Muitas serão chamadas para o ministério da palavra, para a apologética, missões transculturais e o pastoreio, todavia, outras serão chamadas para serem juízas, advogadas, vereadoras, deputadas e porque não, representantes de uma nação. E em todas essas funções e serviços viveremos para a glória de Deus!

 

Conclusão

A Bíblia mostra a atuação de muitas mulheres na edificação da casa de Deus. Muitas foram anfitriãs de igrejas domésticas, como Priscila. Outras foram evangelistas, como Dorcas. As filhas de Tiago exerciam seu dom de profecia (entendido como pregação das escrituras ou como palavra de conhecimento, exortação e consolo) quando os santos se reuniam. Júnia, foi chamada apóstola (Romanos 16:7). Febe exercia cargo de liderança na igreja primitiva (Romanos 16:2). Sem citarmos exemplos do Antigo Testamento, como os de Débora e Hulda. A Bíblia e a história da Igreja tem exemplos suficientes tanto de homens como mulheres que edificaram o Corpo de Cristo.

Não precisamos de uma hermeunêutica feminista[4] para reconhecermos o ministério feminino em nossas igrejas, independente se você defende uma posição complementarista[5], há um essencial que nos une, o sacerdócio universal de todos os crentes. Todos os discípulos e discípulas de Jesus foram comissionados a ir e pregar o evangelho.

Por conta dos estereótipos de feminilidade e masculinidade construídos a partir de uma hermenêutica equivocada das escrituras (e que tem sido fortalecido nessas últimas décadas) temos colocado o casamento, filhos e família como os bens mais preciosos que podemos adquirir. Temos transformado criações belas e legitimas em ídolos. E ao estabelecermos tais ídolos em nossos corações, ensinamos outros a fazerem o mesmo. Que Deus nos livre de vivermos para nossa própria glória, e nos dê a graça de que Ele seja glorificado em tudo que fizermos. Que Ele nos conceda contentamento em todas as circunstâncias de nossa vida, nos lembrando sempre que ELE É suficiente!

 



[1] BTCast MC 028, você pode ter acesso por meio desse link: https://www.youtube.com/watch?v=eNyBKkkYAjI

[2] A Construção da feminilidade bíblica – Editora Thomas Nelson

[3] Publicado pela Thomas Nelson Brasil em parceria com a GodBooks.

[4] Uma das vertentes liberais de interpretação da Bíblia. Normalmente essas linhas de interpretação considera apenas parte das escrituras como “Palavra de Deus”.

[5] Posição teológica que não concorda com a ordenação feminina ao ministério pastoral e liderança eclesiástica.


segunda-feira, 21 de agosto de 2023

O Pacto da Graça


E porei inimizade entre ti e a mulher, 
e entre a tua semente e a sua semente; 
esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.
(Gênesis 3:15)



Local: Vaticano - Capela Sistina

Talvez você como muitos leitores (ouvintes) da Bíblia tenha se questionado: “Por que o Deus do Antigo Testamento (AT) parece tão irado, enquanto que o Deus do Novo Testamento (NT) tem uma aparência mais graciosa e acolhedora? São deuses diferentes?”. Esses questionamentos se dão, na maioria das vezes, por não lermos a narrativa de forma completa, ou por estarmos acostumados a ouvir[1] que a graça veio por meio de Jesus, no NT. Mas, se prestarmos atenção no desenrolar da revelação bíblica, vamos perceber esse Deus gracioso e imutável está presente em todas as páginas da Bíblia.

Geerhardus Vos, Herman Bavinck e a tradição reformada nos apresenta a Teologia Pactual[2], e nos ajuda a perceber que a graça já estava presente desde o livro de Gênesis. O Deus bondoso e gracioso que enviou seu único filho para morrer na cruz pelos nossos pecados[3] é o mesmo Deus do AT. A teologia pactual nos ajuda a perceber que os momentos que vieram após Gênesis 3:15 são simplesmente renovação do mesmo pacto estabelecido no Éden. Tanto entre os patriarcas como em Moisés no Sinai, Deus trata seu povo com base em seus preceitos eternos.

A Teologia do Pacto se divide basicamente em dois períodos: 1) Pacto das Obras e 2) Pacto da Graça. O primeiro se inicia na criação do homem e termina em Gênesis 3. O segundo se inicia em Gênesis 3:15 e finaliza com o estabelecimento do reino cósmico do Messias. A Teologia Bíblica, desdobramento da Teologia Hermenêutica (interpretação), nos permite enxergar melhor essa realidade pactual de Deus com seu povo. Pois ela nos ensina a ler as Escrituras como se estivéssemos lendo uma única história.

 

Pontuações importantes

Nossas traduções da Bíblia, sejam elas no inglês ou português, tem muito da versão grega da Bíblia hebraica, a famosa Septuaginta (LXX). Dentre as muitas dificuldades apresentadas pelo processo de tradução, o termo hebraico berith, foi recebido no grego como diatheke – que era entendido como último desejo, e posteriormente foi traduzido como testamento. Todavia, a ideia de testamento era totalmente desconhecida dos antigos hebreus. Vale considerar também que em sua gama de significados, testamento trata-se de um documento voluntário, passível de modificações e ajustes, principalmente após a morte do testador. Portanto, a palavra pacto expressa melhor o sentido original do termo berith[4].

O objetivo de Deus desde o princípio era ser conhecido. Jesus em sua oração, antes da cruz, fala que a vida eterna é conhecer o Pai e o Filho (João 17:3). Paulo afirmou em sua carta aos cristãos de Filipos que o bem mais precioso que ele possuía era o conhecimento do Cristo, o crucificado (Filipenses 3:9). Portanto, como afirmou Francis Shaeffer, o Deus criador dos céus e da terra, é o Deus que se revela. Ele faz isso como o desenrolar de um drama dentro da história da humanidade.

A ideia bíblia e semítica de conhecer está interligada com a experiência íntima da vida. Ante a isso, conhecer pode significar amar ou separar em amor. Por isso que o ambiente da revelação não é uma escola, mas um pacto[5]. Não é em vão que os profetas e até mesmo Paulo no NT utilizam a linguagem do casamento para falar sobre a relação entre Deus e seu povo, Cristo e a Igreja. Linguagem humana para que pudéssemos entender de alguma forma o mistério da união da humanidade com o Deus trino.

 

O Pacto das Obras

O Pacto das Obras é estabelecido no momento em que Deus coloca a humanidade, homem e mulher, como cabeça da criação. Ele é proferido no momento em que Deus dá a Adão (homem e mulher) aquilo que chamamos dos “Mandatos”[6]. Gênesis 1:28: “E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.”

O Pacto das Obras é quebrado pelo homem, e assim ele perde o domínio sobre a criação, deixando o Pacto das Obras incompleto. O Pacto das Obras não é substituído pelo Pacto da Graça, mas, Jesus vem para cumprir o Pacto das Obras (Efésios 1:10). Ele substitui o lugar de Adão, tornando-se o cabeça. Por esse motivo todo joelho vai se dobrar e toda língua vai confessar que Jesus Cristo é o Senhor. Através de Cristo a humanidade recebeu de volta seu lugar de senhorio sobre a terra e todo o cosmo. Aqueles que estão em Cristo, tornaram-se co-herdeiros / corregentes do Cosmo, como era a vontade de Deus desde o princípio.

 

O Pacto da Graça – a promessa-mãe

Em Gênesis 3:15 Deus promete um redentor, o descente da mulher que pisará a cabeça da serpente, pagando assim o preço para que a humanidade retornasse à sua posição de origem. Não estamos afirmando que os primeiros ouvintes desse texto, da história da criação, associavam a “semente da mulher” à Jesus. O que é possível visualizar é que os primeiros ouvintes, como as gerações seguintes do povo hebreu, sabiam com certeza que Deus tinha um plano para trazer a humanidade de volta para Ele.

O próprio Deus vem ao homem, planta a inimizade, inicia a guerra e promete a vitória. O homem não tem nenhuma participação exceto a de ouvir e aceitar com fé. A promessa e a fé são o conteúdo do pacto da graça que agora é estabelecido para o homem, que revela o caminho para a casa de Deus a essa criatura caída e perdida, e dá acesso à salvação eterna. [...] Assim como era no primeiro anúncio, no qual Deus fixou a inimizade, começou a luta e prometeu a vitória, Deus se mantém o primeiro e o último em todas as dispensações[7] do pacto da graça, seja em Noé, Abraão, Israel ou na igreja do Novo Testamento. Promessa, dom e graça são e permanecem sendo o conteúdo desse pacto. No decorrer do tempo, o seu conteúdo é mais claramente revelado e se torna mais evidente o quão rico é esse pacto. Entretanto, em princípio, tudo já está contido na promessa-mãe. A expressão maior e mais inclusiva da promessa do pacto da graça é: “Eu serei teu Deus e o Deus do teu povo”. (Herman Bavinck)

Por isso o pacto da graça pode permanecer o mesmo ao longo de toda a história da humanidade, porque ele depende inteiramente de Deus. E Deus é imutável e fiel, completamente capaz de realizar o que Ele mesmo estabeleceu. O que temos após Gênesis 3:15 são renovações desse pacto, a revelação de como esse pacto se cumpriria. Primeiro temos os descendentes de Sete, Noé e mais especificamente Abraão. Em Abraão Deus renova o pacto da graça com Isaque e o Messias vem da linhagem de Israel (Jacó).

O pacto da graça é um pacto eterno que se reproduz de geração em geração. O povo pode deixar de andar conforme as diretrizes estabelecidas nesse pacto; Deus pode abandonar seu povo por um tempo, sujeita-los a castigos e julgamento, todavia, Deus não pode violar o seu pacto, porque é um pacto de graça que não depende da conduta dos homens, mas repousa exclusivamente na compaixão de Deus. Por trás do pacto da graça, como bem afirmou Bavinck, repousa a soberana e onipotente vontade de Deus, que por meio de Jesus, garante o triunfo do reino de Deus sobre todo o poder do pecado.

 

Conclusão

Na plenitude dos tempos a semente da mulher nasceu, pisou a cabeça da serpente, derrotando assim o poder do pecado e da morte. A semente da mulher é o primogênito dentre os mortos, o primeiro ser humano a experimentar a ressurreição. Essa é a esperança da nossa salvação, a ressurreição dos mortos. A vitória completa sobre a morte, por meio do Pacto da Graça. A aliança eterna entre Deus e os seres humanos.

A semente da mulher, o Messias, Jesus Cristo, o autor e consumador da nossa fé, voltará para governar as nações e restaurar a terra. À Ele toda glória, pelos séculos dos séculos. Maranata.

 



[1] Devido à Teologia dispensacionalista que se espalhou com muita rapidez em solo brasileiro. Essa tradição teológica teve início no final do século XX.

[2] A teologia pactual tem raízes na tradição reformado do século XVI e XVII, é fundamento hermenêutico de muitas igrejas Batistas e Presbiterianas.

[3] E assim, satisfazer a vontade do Pai.

[4] Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento, editora Cultura Cristã, Geerhardus Vos (Cap. 2).

[5] Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamento, editora Cultura Cristã, Geerhardus Vos (Cap. 1).

[6] 1) Mandato Social; 2) Mandato Cultural; 3) Mandato Espiritual.

[7] É válido ressaltar que Bavinck não utiliza aqui o termo como os dispensacionalistas do século XX, ele está há uma século antes. O termo dispensação é usado simplesmente como período de tempo.


terça-feira, 18 de julho de 2023

Falando em línguas

 

Sem dúvida, há diversos idiomas no mundo; 

todavia, nenhum deles é sem sentido.

Portanto, se eu não entender o significado do que alguém está falando, serei estrangeiro para quem fala, e ele, estrangeiro para mim.

(1 Coríntios 14:10-11)




Há entre os teólogos um entendimento diverso a respeito do dom de línguas, apresentado pelo apóstolo Paulo[1], como sendo um dos dons dado pelo Espírito Santo de Deus. Entre os entendimentos, há aqueles que entendem que o dom de línguas trata-se da habilidade de aprender línguas humanas, enquanto que outra parte inclui a língua dos anjos e o falar diretamente com Deus. Entre os muitos artigos e livros sobre a temática, também é discutido o objetivo e propósito desse dom. Todavia, o foco desse texto será a respeito da aprendizagem de novas línguas, humanas, diga-se de passagem.

Desde o ano de 2019, após meu treinamento em linguística, tenho trilhado essa estrada do aprendizado de novas línguas. Até o momento em que esse texto está sendo escrito, me encontro no aprendizado de minha quarta língua. Poderia afirmar que é um dom do Espírito de Deus? Acredito que sim. Mas, para te falar a verdade querido(a) leitor(a), eu não tinha a mínima ideia desse dom ou habilidade antes de 2019. Foi mesmo a necessidade ao responder o chamado de Deus que me fez descobrir esse dom.

Confesso que me sinto iniciante, comparando minha experiência à de outras pessoas que dedicaram suas vidas a essa paixão ou mesmo habilidade. Mas, espero que essas singelas impressões a seguir contribuam para sua perspectiva pessoal e quem sabe te incentive a aprender uma nova língua.

 

Língua e cosmovisão

Um dos filmes mais assistidos pelos linguistas[2] é a obra “A chegada” de Denis Villeneuve. O enredo do filme é basicamente a chegada de habitantes de outro planeta na terra, eles posicionam suas naves nas principais cidades da terra e aguardam por contato. Os governos mundiais acionam suas forças militares e seus melhores especialistas em línguas para saberem o que esses seres desejam. Entre a equipe norte americana estava uma linguista, Dra. Lousie Banks, interpretada por Amy Adams. Ela consegue decifrar a linguagem desses visitantes e se comunicar com eles.

Um ponto interessante no processo da aquisição dessa língua extraterrestre é o que acontece com a personagem, ela passa a ver o mundo conforme esses seres. A língua de modo geral está conectada com a forma que um povo vê o mundo, sua cosmovisão. Portanto, suas concepções de tempo, valores, religião e prioridades estão marcados na língua. Coisa linda, não é mesmo!? Esses visitantes que chegam na terra possuíam uma visão peculiar do tempo, passado, presente e futuro estão interligados de maneira que são parte de uma coisa só. Esse fenômeno acontece com a personagem de Amy Adams, ela começa a ter vislumbres do futuro, pois adquiriu a língua dos visitantes.

Essa é uma ilustração interessante do processo de aquisição de uma língua. Seus horizontes e perspectivas são ampliados, você passa a conhecer e a apreciar coisas que antes não tinham nenhum valor e sentido para você. A aquisição de língua te ensina a respeitar a perspectiva do outro, e o processo árduo e lento podem te levar ao quebrantamento e humildade.

 

Babel, benção ou maldição?

E disse o Senhor: "Eles são um só povo e falam uma só língua, e começaram a construir isso. Em breve nada poderá impedir o que planejam fazer. Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros". Assim o Senhor os dispersou dali por toda a terra, e pararam de construir a cidade. Por isso foi chamada Babel, porque ali o Senhor confundiu a língua de todo o mundo. Dali o Senhor os espalhou por toda a terra.

(Gênesis 11:6-9 NVI)

Um dos problemas que nos deparamos ao lidarmos com os juízos de Deus é a dificuldade de enxergar a beleza de tudo isso. O contexto de Babel é de desobediência à ordem dada por Deus. Logo após a saída da arca, Deus havia ordenado: “Espalhem-se”, e de maneira contrária eles responderam: “Não vamos nos espalhar!”. Deus intervém na rebeldia humana salvando-os de sua própria destruição.

Ao fazer isso Deus age novamente de modo criativo e inteligente. Ele desenvolve um meio de guardar saberes e habilidades, sem que esses mesmos pudessem levar a humanidade a um novo processo de destruição e consequentemente, juízo. A intervenção divina, por meio das barreiras linguísticas foi uma maneira de guardar a humanidade para a plenitude dos tempos, para a vinda do Messias. Como também foi um modo de expressar a diversidade trinitária em mais um aspecto da humanidade.

Outro ponto interessante a se observar é que essas barreiras linguísticas seriam desenvolvidas, de um modo ou de outro. A ordem dada inicialmente por Deus, se obedecida, traria, com o passar do tempo, o desenvolvimento de novos dialetos, e possivelmente novas línguas. Portanto, o que vemos nessa intervenção mais direta é simplesmente a vontade soberana de Deus sendo cumprida e estabelecida.

 

Uma perspectiva trinitária

Um dos pontos interessantes que podemos observar no ser trinitário de Deus é unidade na diversidade. Três pessoas distintas unidas em um só Deus. A humanidade foi dividida em grupos étnico-linguísticos e através da Trindade, na pessoa do Espírito Santo, foi reconciliada em um único corpo, a Igreja. Tanto na igreja primitiva, expressa no relato de Atos dos Apóstolos, quanto diante do Trono de Deus essa diversidade linguística e étnica será preservada. Seremos apenas um povo, mas ricos em línguas e expressões culturais.

Em Deus não teremos barreiras linguísticas ou culturais, mas ao mesmos tempo usaremos nossos artefatos culturais e linguísticos para louvá-lo e glorifica-lo. Nossa adoração será plural, rica e bela, pois teremos povos de todas as etnias e grupos linguísticos adorando Aquele que se assenta no Trono do universo. Essa cena foi vista pelo apóstolo João (Apocalipse 7), e tem sido uma realidade à cada novo crente que se torna parte da família de Deus, à cada Bíblia traduzida e a cada igreja plantada nos lugares mais distantes da terra.

Da mesma forma que Deus repartiu com os membros do Corpo de Cristo, diversidades de dons e talentos, Ele também repartiu a beleza de Seu próprio ser nas línguas e culturas da terra. Não estou desconsiderando aqui as consequências da queda e do pecado. Todavia, quero afirmar que da mesma forma que o pecado teve consequências cósmicas e transcendentes, a restauração de todas as coisas que está por vir, será também cósmica e completa. Línguas e culturas serão usadas para a restauração da terra e glorificação do nome de Deus.

 

 



[1] I Coríntios 12

[2] Tive contato com essa produção durante o Curso de Linguística e Missiologia (CLM), oferecido pela missão ALEM em Brasília.